O barulho da chuva era tão alto que nós não conseguíamos nos ouvir, torrencialidades de desejos, eu me lembro que você disse alguma coisa sobre a gente, sobre estar juntos, mas as gotas grossas e pesadas nos separavam como abismos, eu me lembro de ter perguntado bem alto o que foi que você disse, enquanto deslizava a mão no rosto para represar aqueles aquedutos correndo, um fluxo de expressões ansiosas que eu queria esconder de você, parados os dois naquele estacionamento vazio, você se aproximou e tocou com dedos leves o meu rosto pulando corajosamente gargantas e ravinas, éramos dois homens nos tocando naquele teatro de Noé, e não havia lugar onde pudéssemos nos abrigar daquele dilúvio, mas a pergunta era: queríamos isso realmente? Talvez se a gente se escondesse daquele aguaceiro, talvez isso significasse uma ruptura do momento, talvez nós passássemos a nos ouvir melhor, e no nosso caso, compreender era perigoso, você me perguntou se eu estava a fim de me render ao clichê e juntarmos nossas bocas na chuva, beijo cinematográfico, hudsons e newmans. Eu disse que sim, que só faltava alguém com aquela plaquinha divertida de claquete pra dizer ação e então nos beijaríamos bem hollywood debaixo daquela chuva, você me respondeu qualquer coisa assim como a chuva é a nossa diretora e eu dei risada, rimos juntos, eu me aproximei de você, olhei no fundo da tua boca e beijei o cristalino dos teus olhos, estes olhos estranhos e belos, ficamos assim parados nesse nosso teatrinho de representações, você deu um passo dentro da chuva, você estendeu a mão e tocou na minha barba, a partir disso mundos cederam em alguma parte, na realidade, expostos da chuva, sem fugir da chuva eu fugia da chuva, fugia do chuvisqueiro dentro de mim, você fugia da sua garoa interna, refúgio, marquise existencial de mãos dadas, um carro passou, depois outro, deviam estranhar aqueles dois caras estatelados por atrações mútuas, os faróis iluminando aqueles dois perdidos que se encontraram, mas faltava muito pouco, a minha boca já diante da sua, o bafo de cerveja e halls se misturando, as bocas e línguas quase se enroscando entre as Águas e Incontinências do mundo, dois rios, Amazonas e Orinoco, tua boca encostou na minha, minha boca encostou na tua, descarga elétrica no diapasão dos nossos corpos, nossas línguas se enroscaram num quente, redundante, molhado e triste beijo, um carro passou nos iluminou, musiquinha dos Smiths tocando alto "and if you must go to work tomorrow"..., nossas línguas enroscadas naquele embate desmitificador de projeções, meu halls passou pra tua boca, eu me embebedei com seu hálito, e nos olhamos e ficamos parados na chuva abraçados e, sim, éramos o melhor exemplar de nossa espécie.