A mulher de azul

Todos os dias no mesmo andar. O segundo. No mesmo passo. Arrastado e pulsante. No mesmo toque. Mãos leves e que desliza. Com os mesmos pisos. Os mesmos panos. Os mesmos produtos. As mesmas sujeiras.

Uma senhora já de idade. Parece uma vó querida, digo. Não, não pude ter filhos, me diz ela ainda com o seu brilho nos olhos. Uma senhora de brilho nos olhos. De um brilho que parece vida. Um brilho que parece que tem algo pra sair do corpo.

Eu vou bem, tirando a dor no joelho. Ah! Dor no joelho é fogo né? joelheira ajuda porque a senhora não compra? Ah! é? vou comprar...

O azul do uniforme. Uniforme o azul. O andar. O passar. O falar. Uniforme...

Oi, tudo bem com a senhora? Tudo, tá chegando ou tá indo? To chegando, e já atrasada... Sempre né? Sempre... Tudo, tirando a dor no joelho. Ainda? Ainda! E a joelheira? Não comprei não... Tá com dor ainda? Ainda! E porque a senhora não sai pra pegar um sol? ajuda! Não posso... Porque? Porque a gente tem que fica no andar que a gente trabalha. O segundo. Que merda! E quando não tá trabalhando tem que ficar aqui no banheiro. não pode circular entre os alunos também...

Ficar. Ficar. Ficar.

Mas e o sol?

Não pode.

E suas rosas? Ah! Morreu uma, mas a outra tá lá. bonita. adoro rosas. meu marido já morreu. não tive filhos. não pude ter. já sou aposentada, mas o dinheiro não dá pra pagar o aluguel. tá indo ou tá chegando? To indo, já atrasada. Sempre né? É...

Sempre né? É...

Rosas, adoro rosas

Eu também..

Morreu uma, mas agora já tem duas

Ah! que bom, faz compania né? Faz. E porque a senhora não adota um gato ou um cachorro? Acordo cedo e chego tarde, iam ficar muito sozinhos. Hum, é... ruim... muito cedo? Cedo, 3h30 da manhã... Nossa é...

Tinha um menino que me chamava de vó no prédio antigo, aquele do Ipiranga. É porque a senhora tem cara de vó, de vó querida. Mais não pude ter não, só tenho uma irmã. E porque não vai morar com ela? Ah não, tanto tempo morando sozinha, não costumo mais não. Hum, entendo, acostuma com a liberdade né? É... e tem minhas plantas, quem que ia cuidar delas né? É...

As rosas. O banheiro. A sujeira. O brilho no olhar. Um brilho de quem quer sair do corpo.

Um brilho.

Um brilho de quem quer sair do corpo..

sair...

rosas...

passa, limpa, fica, tá chegando ou tá indo?


To indo dona Maria,

bom dia pra senhora!

Pra você também filha!

2 comentários:

  1. Viver não dói

    Definitivo, como tudo o que é simples.
    Nossa dor não advém das coisas vividas,
    mas das coisas que foram sonhadas
    e não se cumpriram.

    Por que sofremos tanto por amor?

    O certo seria a gente não sofrer,
    apenas agradecer por termos conhecido
    uma pessoa tão bacana, que gerou
    em nós um sentimento intenso
    e que nos fez companhia por um tempo razoável,
    um tempo feliz.

    Sofremos por quê?

    Porque automaticamente esquecemos
    o que foi desfrutado e passamos a sofrer
    pelas nossas projecções irrealizadas,
    por todas as cidades que gostaríamos
    de ter conhecido ao lado do nosso amor
    e não conhecemos,
    por todos os filhos que
    gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
    por todos os shows e livros e silêncios
    que gostaríamos de ter compartilhado,
    e não compartilhamos.
    Por todos os beijos cancelados,
    pela eternidade.

    Sofremos não porque
    nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
    mas por todas as horas livres
    que deixamos de ter para ir ao cinema,
    para conversar com um amigo,
    para nadar, para namorar.

    Sofremos não porque nossa mãe
    é impaciente conosco,
    mas por todos os momentos em que
    poderíamos estar confidenciando a ela
    nossas mais profundas angústias
    se ela estivesse interessada
    em nos compreender.

    Sofremos não porque nosso time perdeu,
    mas pela euforia sufocada.

    Sofremos não porque envelhecemos,
    mas porque o futuro está sendo
    confiscado de nós,
    impedindo assim que mil aventuras
    nos aconteçam,
    todas aquelas com as quais sonhamos e
    nunca chegamos a experimentar.

    Como aliviar a dor do que não foi vivido?

    A resposta é simples como um verso:
    Se iludindo menos e vivendo mais!!!

    A cada dia que vivo,
    mais me convenço de que o
    desperdício da vida
    está no amor que não damos,
    nas forças que não usamos,
    na prudência egoísta que nada arrisca,
    e que, esquivando-se do sofrimento,
    perdemos também a felicidade.

    A dor é inevitável.

    O sofrimento é opcional.


    Carlos Drummond de Andrade

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  2. Essas Donas Marias...

    A vontade era de mandar todo mundo tomar no cu. Sim. No cu, porque não? Aliás, talvez não tomar no cu... Isso seria um conselho gentil demais para aquelas pessoas.... Talvez um soco no nariz... ou no estômago... Ou gritar na orelha das pessoas! Sim!!! Encher os ouvidos de todos com tanta bosta gritada que a cabeça deles iria até ficar pesada... Quem sabe explodir! Que imagem maravilhosa!!!
    Mas não. Ele já havia aprendido. O direito de gritar e vomitar fezes nas outras pessoas era dado apenas ao chefe. E a ninguém mais. Ninguém? Claro que tinha mais gente... A porra do público! Os frequentadores! Eles também tinham o direito de cagar na cabeça do atendimento. Aliás, ele desconfiava que haviam comunidades que cultivavam pessoas infelizes, maltratadas, constantemente humilhadas (assim como ele) e, de vez em quando, enchiam vários ônibus desses coitados e os levava para ter o único momento de alegria de suas vidas: tratar ele do mesmo jeito como eram tratados. Sentir o gostinho de ser superior a alguém, de poder humilhar aquilo que estava abaixo deles... Pensar nisso fazia-o ter um minuto de pena das pessoas que o faziam tão mal... Um minuto. Foda-se! Que merda! Eu nunca tratei ninguém mal para merecer isso! E olha que motivo nunca me faltou... Estou cada vez mais cheio... Mais cheio... Meu... coração... vai... parar... congelou de ódio, vai explodir...
    - Menino! Que bom que eu te encontrei! Você melhorou? Estava tão gripado na semana passada... Fiquei preocupada! Trouxe um chá!
    - Dona Maria? Mas, imagina... Não precisava se preocupar não... Já está tudo bem...
    - Claro que tem que se preocupar menino! Não era nem para você ter trabalhado daquele jeito... Tinha que descansar... Eu te fiz um doce também...
    - Dona Maria... Assim eu não consigo ter raiva do mundo...
    - Raiva menino? Mas raiva só faz mal para o seu coração. Envelhece. Não vale a pena ter raiva não. Olha, se eu vivi tanto tempo, é porque aprendi a não guardar mágoa, não acumular raiva. Você é um rapaz tão novo! Tem tanta coisa bonita para viver ainda...
    - ...
    - Quer me contar o que aconteceu?
    - Nada não... esquece Dona Maria... o doce é do que mesmo?

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