Indivíduos ou um conto sobre angústia.

Tinham o peito preenchido pela ausência. A selva que cercava suas casas também cresciam em galhos nos  pensamentos. Eram, naturalmente, felizes (ou deveriam ser) já que possuíam a mais rica tecnologia para se comunicarem - eram lindas mercadorias com as mais diferentes luzes e botões. Acreditavam no poder  como resultado dos anos trabalhados em esforços. Possivelmente alguém (em tantos) vingaria, assim poderia distribuir em bondades e caridades o que os outros necessitavam para se manterem vivos durante os dias que voavam com o tempo.

(O tempo, velho ingrato que teima em voar, insiste em perpetuar a ausência, aquela mesma que preenche os peitos.)

Se encontram, toda semana, em grupos de crenças para satisfazerem o doce prazer da relação.

Labirinto

Uma estrela hoje caiu
Minha cabeça atingiu em cheio
Assim despencou...do nada
Sangue lunar de repente
Por minha face escorrendo

Seu brilho noturno clama o céu
De suas luzes apossou-se
A megalópole
Morte súbita entre as luzes artificiais
Estava só, quando dei por mim

haikai urbano

o neon na pele

liquefaz o corpo todo.

sombras no asfalto.

cru

eu vivo aqui mesmo, perto do chão
gosto de sentir o cheiro de mijo da calçada
gosto do gosto de porra na boca
vôo às vezes por aí
mordida numa nuvem cinza
vôo cego, sem capacete
e o sol na cara
o chão é meu segundo lar, volto sempre que posso
pouso derrapante em dias de chuva

Parceiro de Queda Livre

Eu também varo nuvens caindo
por entre rajadas de vento
do topo de minhas pretensões mais elevadas
e contraponho momentos em que vôo
à margem do choque fatal
com o desespero de quem não tem onde se segurar
afundando cada vez mais 
nas profundezas existenciais

Eu fui olhar o abismo
e me encantei com sua grandeza
atraído pelo brilho sublime da luz
dei um passo além
e caí pra sempre no vício do sonho
no lodo humano
caí para sempre em seu desvão de sentido
estou caindo sem nenhum controle
e nenhuma oração pode me salvar
e nenhum remédio nem uma bela mentira 
pode evitar meu desastre

nada

Voltava pra casa depois de duas semanas fora, tinha precisado de umas férias da própria vida, mas já sentia saudades de casa. Não há lugar como nosso lar, descia a rua lembrando de Dorothy e quando viu já estava em frente ao seu prédio.

Abriu a porta e sentiu aquele cheiro conhecido, de cera misturado com desinfetante. Engraçado como lembramos dos cheiros, ainda lembrava do cheiro da escola na primeira série e sempre que sentia aquele cheiro, que nem sabia identificar, era transportada pra aquela época.

Entrou no elevador antigo e mais uma vez teve medo que ele parasse de repente entre os andares, apesar de nunca ter parado com ela era insuportavelmente lento. Décimo terceiro andar era o dela, sã e salva. O corredor era comprido e cheio de portas, numa delas estava sua casa. Não há lugar como nosso lar. Na sua porta, o tapete colorido e brega parecia gritar algo sobre a dona da casa. Chave na fechadura e a pressa de tirar os sapatos e fazer um xixi, porque não conseguia mijar calçada.

Caindo

Não lembro muito bem quando pulei, ou se jogaram-me... Só sei que quando percebi já caía neste precipício sem fim. Todos caiam, e caiam sozinhos.

Alguns dos que caiam, agarravam-se a pedras, guarda-chuvas ou papéis soltos, deixados pelos que antes caíram. As vezes divinizavam tais objetos, e diziam que lhe contavam histórias sobre o fim da queda, ou que um dia o sofrimento e o medo acabariam. Mas se acabasse o sofrimento o que seria do Amor?! Por vezes tentei acreditar, também tentei agarrar-me, mas logo desistia, havia pouca beleza em tudo.

...

Vai desconstruindo essa eternidade dentro de ti,
Porque é tudo poeira
Vai lavando em rio,
Tua alma arteira
Porque no final, cujo lugar desconhecemos,
O que se tem são correntezas,
Que se espalham terra a dentro...

sem título

e de repente a gente nem precisa de espelho pra entender que cresceu
que cresceu demais para o que queria
que o que escorre já tem outro peso
dói mais
demora mais pra passar
demora mais pra entender
pra compreender
pra aceitar
e de repente os silêncios fazem mais parte do que se queria
as incertezas, as dúvidas e os medos já nem se contam mais
isso porque parecia que quanto mais se crescia mais simples seria
poder fazer qualquer coisa
ir a qualquer lugar
e de repente ser o dono de si mesmo pesa
pesa mais do que se sonhava
do que se podia imaginar
e nessa construção
pensamentos ossificados
sensações liquidas
medos santificados
buscas mobiliadas
e são várias paredes brancas
e são vários os silêncios
e você crescido...

O fim previsível é o mais provável de todos os erros

Braços vão além da extensão do corpo, e eu, com essa iluminação, tracei tua áurea com a língua sobre seus pêlos.  Imaginei o corpo sendo o mundo desnudo, e nós, as partes deslocadas da matéria-mãe, desencaixados e vulneráveis a seguir objetivos que nunca serão nossos. Válvulas de improviso  que resistem ao prazo de validade, sabendo que só há uma chance de romper com os dogmas. E se por alguma crença, existirem outras, essa não deixará de ser única. Nada é o mesmo sempre, nem mesmo as peças do mesmo fabricante.

Pé de estrela!

Havia ventado tanto, que as emoções foram todas levadas junto com o vento. Emoções, segredos e histórias - aquelas contadas e não contadas. Era tudo tão imprevisto, o caminho tão difícil, quase um sono sem sonhos. Tinha até um castelo, mas que não dava para brincar.
E o desejo era tanto, tanto, que houve um dia em que aconteceu que tudo se evaporou. E você sabe, né, vapor que sobe para o céu,  tem essa história de virar nuvem e também da nuvem virar chuva...
Mas o certo foi que ali, ao invés de virar vapor, nuvem, chuva,  tudo aquilo virou semente ...
Semente de estrela.
Que a gente plantou.
Vagarosamente...
E sem medo algum.

A Ausência

A ausência era seu par. Para ela dava colo, consolo, cuidado. Saiam para passear de mãos dadas. Visitavam bosques, museus, cinemas, espetáculos dos mais variados. Bebiam vinho. Preferiam comida japonesa com shoyu light. Ele e ela, a ausência, sempre lá. Um bom tempo passou. E, ele, só de olhar para ela sentia cansaço. Quis terminar o romance. Ela? Não. Bateu o pé. Já estava acostumada ao colo, ao consolo, ao cuidado. Não teve jeito. Ele partiu para o litigioso. Em meio às discussões banhadas em dores o processo correu. Foi mais rápido do que ele imaginava. Enfim: a separação! Um alívio. Agora sim! Naquela noite ao deitar sentiu um cheiro que nunca tinha sentido, pelo menos não se lembrava. Ao acordar olhou para o lado da cama que a ausência costumava ocupar. Sentiu-se só.

Flores do Paraíso

Faço de minha loucura meus versos

De meus versos faço meu reverso

Busco solução para o que não tem mais

que ser resolvido

Tento acreditar em algo e diariamente

me mostram que estou enganada

Da viril vaidade do homem que escreve ou fálico é o falante

Éramos praticantes das mesmas simbologias, embora tomássemos parte nessa mecânica como partes distintas e destacadas. Enquanto eu marcava a ferro as datas das minhas mais cabais frustrações, ele empunhava o ferro e dava o contorno tipografado dos números de dias e anos que em minha pele devia servir de brasão.

Andávamos juntos ao rigor da sincronia das marchas. Eu era sempre o pé que apoiava, que suportava todo o peso nas juntas comprimidas querendo partir-se. Mas era ele quem conduzia, quem revelava o caminho e estava sempre no ar. O pé que impulsionava era leve como a fumaça, mas combustível como o âmbar.

Quarar

Atravessar-me
Mudar de metade
Ver a que não conheço
Dar a ela a mão
Tirá-la do cheiro de guardado

Dar a ela banho de sol
Quarar com sabão de côco
Deixar a espuma endurecer
Banhar na água a metade quarada
Vê-la transparente, clareando

Da parte que não domino eu

Metade da minha vida
Tenho nos dentes
A outra metade, caminha
Não sei se chega,
Não sei se levo
Sinto-me do outro lado da beira
Da estrada que não quero borrar
Sinto-me a um pulo de mudar o eixo
De trocar os sapatos
De me vestir de mim
Sinto-me querendo voltar
À essência que me transforma em ser

Minha receita cotidiana

Todas as manhãs levanto antes do sol
faminto de sono

Misturo passos e pequenos saltos
mexo até dar liga

Bato tudo com um pouco de ônibus
e pitadas de metrô

Cozinho meu caminho até o serviço
em fogo baixo

Aroma

Minha fé tem cheiro de mato.
Terra molhada, café torrado.
Doce e amarga.

Café

Café, terra coada.
É o teu sumo que me corteja.
Seja ele quente, morno ou frio.

Principia.

A propósito do descabimento

Despertei de repente, embora já estivesse acordado. Impelido por qualquer vaidade, fui ao berço de ça propriedade como um, que sou, destemido. Queria saber até onde ia minh'obra. Desafiei-me, então. Subi num palco sem qualquer roteiro e fiz tecer, indecentemente, mais uma alucinação de meu ego. Disse que assim era o trato e me pus ao labor da escultura como um artesão à altura fizesse arte do artesanato. Eu, no entanto, queria mais que um tom de cultura; queria a mágica e o encanto que surgem da folha vazia, da alma em branco. E fui. Pensei não precisar de argumento; de motivo ou inspiração. Pensei que era só por pra for o de dentro e a notícia teria sentido, o "teria" seria por si, e o sentido faria a razão. Mas caber em meu ego, como a caixa onde cabe o sapato cabe no armário, não é uma simples tarefa do intento e não basta a vontade ou os ossos pequenos, pois o espaço que falta não é gaveta ou compartimento, mas justamente esse excesso em pauta, do falar tão seguro que exalta, a propósito do descabimento. E, então, percebi que era tarde; que a tarde na história era o texto e o seu momento - e não a sacada do gênio. Pensei em apagar cada verbo, cada vírgula, palavra e até o espaçamento. Mas havia uma clausula já prevista nos astros - que os minutos gastos, era esse o investimento. E mesmo que assim apagasse, e o branco aos olhos abertos voltasse, o poema jamais voltaria no tempo.

Tempo


A demora vem socorrer o tempo já velho,
como se as linhas das mãos fossem estradas.
Qual será o tempo dos meus olhos?
Fenomenologia aplicada.
Tempo que escapa e se guarda.
Chá frio...
Cromos da aurora de meus olhos.
Sentidos que o tempo faz sentir doído.
Muros que te deixam subir bem alto.
Descobertas, desafios...Muralhas...
O tempo é como a bicicleta...
Um quase voar.

Auto-imagem e semelhança

Ele: esse labirinto concêntrico em forma de umbigo
Um buraco amigo pra chamar de seu: quarto
Onde possa imitar anúncios de cigarro
E planejar a próxima frase de efeito.

Hoje acordou olhou para a janela e, desconfiado,  se perguntou: tem alguém aí?

Evaporização

Sobre este espaço vazio tento escapar do compasso binário, do pêndulo sufocante e monótono. Pago pedágio o dia inteiro. Nas ruas, disfarço-me na frivolidade e sigo cantando. O denso cotidiano coagula meu sangue. Repouso nas paredes amareladas de nicotina do meu quarto. Com a fumaça faço ininterruptos círculos concêntricos, acho graça em vê-los se desfazer no ar. Preparo-me para o breu insondável. Fujo dos voos estéticos e sedutores das palavras bem encaixadas e sonoramente bem desenhadas. Brinco de funâmbulo entre as quase memórias das quase experiências que quase tive. Se pudesse me enterrava por aqui, escrevendo enfurecidamente, disparando palavra atrás de palavra, ora vociferando, ora fazendo gracejo, ora sem propósito algum. Cada palavra é um passo, corro sem olhar para trás. Sofro de fúria ambulatória. Ouço gente lá fora, buzinas, o caminhão do lixo, risos, fragmentos de conversa, confundo os tempos, incluo-os no ciranda. Não faço isso por necessidade, por vontade ou para me sentir feliz. Faço simplesmente para criar uma lacuna de mim mesmo. Faço para escapar do abismo cego das preocupações diárias. Neste espaço de tempo, sou os ininterruptos círculos concêntricos que se desmancham no ar, tudo que é específico evapora-se, transformam-se em paisagem. É isso. Busco a calma inerte das paisagens, não pela alegria doentia de confundir-me no coletivo, a mesma alegria que se vende nas lojas de 1,99 e sim por entender a frágil e sublime dança dos fragmentos. Pela claraboia do meu quarto percebo que já está na hora. Faço a barba, me visto e disfarço minha indiferença com um belo sorriso.

Desapego


Em dias que o peso do mundo cai sobre sua total responsabilidade,
aprenda que, o tempo é outro, mas os poetas antigos, falavam sobre nossos problemas,
vejamos, o sol é o mesmo, a lua é a mesma, estrelas mortas ainda brilham,
a vida é uma ponte, e somos deuses.

Escravos do tempo, não entendem que a velocidade aumenta os batimentos,
mas jamais, ouça, jamais, trará a paz que procura, essa paz,
se faz no cotidiano, nas escolhas diárias,
como podem se preparar pra um futuro,
esquecendo o futuro do dia de ontem,
o vento não sopra o mesmo lírio,
ele cria novos lírios.

E ainda me vêm com a ideia de que somos evoluídos...

A luz tem sombra?


LAURA SALERNO

Espanto

O menino interrompeu seu passo. A voz que ouvia não era de alguém, mas da sombra.

A sua sombra falava.

Falou de quando era jovem e pequena, de como cresceu e tornou-se sombra adulta. Contou que as sombras vivem para sempre, aparecem onde tem luz, e fazem festa onde não tem. Disse que se alimentava de poeira, e que estava cansada de tanto andar.

Jack in the box

Certa vez,
aconteceu de uma amiga
ganhar um presente 
Desses presentes de afeto
e não de nota
Desses presentes que dados na hora
são os que a gente mais gosta

Ofereceram-lhe uma balinha
E era água para sede
Aquele doce, 
naquela hora, 
naquele dia

Boneca Inflável

Ela está ali, pronta, cheia de ar desde a ponta dos cabelos até a unha do mindinho. A boca sempre pronta a oferecer prazer, batom vermelho, lábios finos sempre abertos No corpo somente o plástico claro a modelar suas curvas sinuosas, o toque especial eram as longas unhas vermelhas das mãos prontas para as carícias, mas em nada, nada mesmo jamais superariam aquela boca, pronta para amar. Assim ele a via... Sobre os olhos sombra azul celeste convidava à viagem entre nuvens de diamantes, fechando-se em nariz afinado e meio arrebitado estilo Marilyn Monroe.

Carregava o estigma da sensualidade feminina a toda prova, tinha que sê-lo, pois precisava muito de dinheiro e a profissão de artista plástico não andava nada boa, ainda mais para os populares, sem escolarização. Seus estudos eram a vida e a arte na rua, para a rua, mas precisava sobreviver e resolvera investir em sexo, coisa sem a qual nenhum caboclo, do mais simples ao mais pomposo, não vivia.

Ancestrais

Caminho por uma praia abstrata,
frequencial,
dodecafônica.
A ressaca das águas,
despeja plânctons e recalques
nos meus pés nus.

O cheiro de ancestralidade,
diante do crepom abissal,
a maresia
me derruba com a sua insolência.

A umidade relativa da água.

Chegou na minha casa às 23:37. Sei exatamente a hora porque olhei no relógio - sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria escrevendo sobre isso e me apeguei aos detalhes desde a espera até a hora que ela partiu. Abri a porta e ela entrou. Sentou-se no sofá, cruzando as pernas que saíam de dentro do vestido minúsculo, e esboçou um início de conversa: - Bela casa você tem.

- É alugada. – tive que dizer para que ela não pensasse enganosamente da minha situação financeira.

- Ainda assim é bonita. – ela concluiu.

Eu ofereci um vinho, cerveja ou água, ela rejeitou todos sumariamente, se levantou do sofá, colocou as duas mãos na minha cintura e começou com as carícias. Primeiro subindo pelo abdômen, por dentro da camisa, por todo torso até o peitoral, depois descendo, cravando as mãos por dentro das minhas calças e apertando minhas nádegas com força.

Na Chuva, Não Tem Que Se Molhar

“Belezas à parte, quero mesmo é viver.
Chuva para mim é só tempo úmido”
(Valéria)


O ambiente é opressor, sabe que diante daquelas situações o melhor é se calar. Cruza as pernas bem delineadas e continua somente apreciando o lugar. O salão oval, abobadado, termina em lindo vitral fornecido pelo príncipe regente, as paredes são mantidas com características de época, vez por outra, surge um lugar desbotado, desgastado pelo tempo.

A reunião continua, não sabe até que horas suportará companhias tão desagradáveis, políticos vencem eleições em nome do povo, governam para si próprios, acovardados diante da vida, seguem causando mais malefícios que benefícios.

Se ao menos aquela mulher parasse um pouco de falar, ajudaria. Todos na sala sabiam que nenhum tratado internacional jamais seria assinado em prol das comunidades pobres e da preservação do meio ambiente, mas faziam defesa à proposta, daria força à candidatura.

O beijo sob a chuva ácida

O barulho da chuva era tão alto que nós não conseguíamos nos ouvir, torrencialidades de desejos, eu me lembro que você disse alguma coisa sobre a gente, sobre estar juntos, mas as gotas grossas e pesadas nos separavam como abismos, eu me lembro de ter perguntado bem alto o que foi que você disse, enquanto deslizava a mão no rosto para represar aqueles aquedutos correndo, um fluxo de expressões ansiosas que eu queria esconder de você, parados os dois naquele estacionamento vazio, você se aproximou e tocou com dedos leves o meu rosto pulando corajosamente gargantas e ravinas, éramos dois homens nos tocando naquele teatro de Noé, e não havia lugar onde pudéssemos nos abrigar daquele dilúvio, mas a pergunta era: queríamos isso realmente? Talvez se a gente se escondesse daquele aguaceiro, talvez isso significasse uma ruptura do momento, talvez nós passássemos a nos ouvir melhor, e no nosso caso, compreender era perigoso, você me perguntou se eu estava a fim de me render ao clichê e juntarmos nossas bocas na chuva, beijo cinematográfico, hudsons e newmans. Eu disse que sim, que só faltava alguém com aquela plaquinha divertida de claquete pra dizer ação e então nos beijaríamos bem hollywood debaixo daquela chuva, você me respondeu qualquer coisa assim como a chuva é a nossa diretora e eu dei risada, rimos juntos, eu me aproximei de você, olhei no fundo da tua boca e beijei o cristalino dos teus olhos, estes olhos estranhos e belos, ficamos assim parados nesse nosso teatrinho de representações, você deu um passo dentro da chuva, você estendeu a mão e tocou na minha barba, a partir disso mundos cederam em alguma parte, na realidade, expostos da chuva, sem fugir da chuva eu fugia da chuva, fugia do chuvisqueiro dentro de mim, você fugia da sua garoa interna, refúgio, marquise existencial de mãos dadas, um carro passou, depois outro, deviam estranhar aqueles dois caras estatelados por atrações mútuas, os faróis iluminando aqueles dois perdidos que se encontraram, mas faltava muito pouco, a minha boca já diante da sua, o bafo de cerveja e halls se misturando, as bocas e línguas quase se enroscando entre as Águas e Incontinências do mundo, dois rios, Amazonas e Orinoco, tua boca encostou na minha, minha boca encostou na tua, descarga elétrica no diapasão dos nossos corpos, nossas línguas se enroscaram num quente, redundante, molhado e triste beijo, um carro passou nos iluminou, musiquinha dos Smiths tocando alto "and if you must go to work tomorrow"..., nossas línguas enroscadas naquele embate desmitificador de projeções, meu halls passou pra tua boca, eu me embebedei com seu hálito, e nos olhamos e ficamos parados na chuva abraçados e, sim, éramos o melhor exemplar de nossa espécie.

Dobradinha



Lua fénix:
oscilante espectadora




Isto é


Muita chuva e pouco arco-íris

Seria mais um dia de inumeráveis incoerências onde as crianças são terríveis, os homens os donos, as mulheres caladas e os velhos apêndices. Outra vez o amor seria confundido com propriedade do corpo alheio e frases concluídas pelo romântico fetichismo. Mais uma vez morreriam milhares em nome da mercancia pátria intolerante fanática do senso comum. Seguiriam as pessoas, confiando para si como verdade, as palavras de revistas que veem. Algum indivíduo voaria o mundo em primeira classe em busca de felicidade e outro alguém não daria (sequer) um passo, graças a tristeza do estômago vazio. Humanos assistiriam a dramaturgia real espetacular de um mundo em um quadrado de imagens hegemônicas. Seria até possível presenciar aqueles que desempenham seu emprego de sacrificar os desrespeitosos da ordem. Seria mais um dia desses o próximo e os próximos e os próximos...

Poesia sem poeta II

Um dia vou fazer uma poesia,
Que explique tudo,
Sei que ninguém vai entender,
Por isso mesmo farei!

Será uma poesia que não falará de amor,
Muito menos de saudade!
Não citará nem sequer a paixão!

Não será ridiculamente romântica,
Não haverá fantasias ou devaneios.
Será verdadeiramente sincera!

Filacantos

Abrem a janela do dia,
Fios de canto e poesia
Contos, prosas em fotografia...
Uma rede vai se tecendo em palavras
Um tanto de ócio, um tanto de saudade,
Um tanto de dor, um tanto de risos.

Aqui, nesse canto da rede de calor e muito mar
Faz hoje uma chuvinha preguiçosa,
Que chamam os versos em sopro
Que ardem somente a calma...

O chamavam de Gorila

Se queria comer, pegava
Se não queria, dormia
De todo modo não falava
Se escutava, não entendia

Ali parado só olhava
Se pensava, não sabia
Se queria comer, pegava
Se não queria, dormia