Ausente à dor

A dor, se não era quase
Era nada
Um nada de prazer
Um nada de vazio incompreensível
Porque se afastara dela assim,
Como se não reconhecesse suas mãos e pernas
Mas iria voltar,
Iria morrer esta
E renascer a outra
Outra, que era ela...

Quase...

Nas costas sentia algo, que quase instintivamente identificou como uma dor, mas dores era coisa que sentia havia tanto tempo, que nem mais o incomodava; embora percebesse, quase instintivamente, que elas estavam presentes como algo que não era de sua constituição, mas que pouco a pouco se tornaram parte dele. Essa dor, por alguma razão diferente das demais que lhe acompanhavam ao longo do tempo, o fez deitar-se, quase que instintivamente. Talvez esse descanso, fora de hora, fora de rotina, fora dos movimentos quase instintivos que aprendera - ou antes, desenvolvera como parte de um tipo de adestramento que era sua vida - o fizera olhar de forma diferente para a pequena foto colada na parede, ao lado da cama. A pequena foto sempre estivera lá: ele jovem, uma jovem ao seu lado, sorrisos, água das ondas lambendo as penas de ambos, sorrisos, amor, sorrisos. Um quase lampejo de memória tentou provocar alguma emoção, alguma ligação com o passado. Quase instintivamente uma ponta de sorriso marcou o canto esquerdo dos lábios há tanto tempo endurecidos. Não fosse a pressa da morte em chegar-se a ele, pois havia ainda tantos desconhecidos a visitar, talvez ele tivesse aproveitado um derradeiro instante de humanidade. Morreu, quase que instintivamente.

A caixa laranja do arco-íris dourado

Selenita realiza, assim como centenas de milhares de mulheres, uma dupla jornada de trabalho. É secretária de um advogado falido no centro da cidade. Dr. Miguel. E, além disso, ao chegar em sua casa, passa roupa, lava copo, estende roupa e pinta o cabelo. Vinte e quatro horas multiplicadas por três ao cubo. É essa a impressão que se tem observando essa dona

Selenita é uma alavanca, daquelas que aprendemos em física, mais precisamente em mecânica. É só fazer a associação. Não olha nem para os próprios pés. Levanta-se às sete da manhã, sempre com o pé direito, pois isso já a direciona para o guarda-roupa, de onde recolhe sua calça preta de veludo e uma camisa branca amarelada, assim como todas as outras que ainda tem. Depois escova os dentes. Toma café. Escova de novo os dentes e faz uma trança no cabelo (dá mais credibilidade, um dia lhe disseram).


Sobre um Conto de Ninar

Era uma vez uma menina que não se chamava. Que ninguém chamava. Ela não tinha nome.
Uma menina que não morava em nenhum lugar. Ela não estava nem permanecia. Ela não tinha vizinhos não tinha pai nem mãe. Uma menina que não nasceu, não foi cuspida, esculpida ou escarrada, nem no lixo nem no mármore.
Era uma vez uma menina que não respirava, que nem o ar lhe passava. Que não dizia nada não ouvia nada. Ela não tinha voz nem ouvidos. Uma menina que não era menina.
Uma menina que não dormia nem acordava. Ela não tinha olhos ela não via nada ela nunca viu um chapéu nem um passarinho nem sapatos nem criança.
Uma menina que não tinha tripas não tinha estômago nem rim nem coração ela não tinha nada. Uma menina que era um monte de nada e de nunca. Nada e nunca dentro dela num monturo, no meio do dentro que não tinha fora.
Era uma vez uma menina que não chorava. Não brotava água dela. Uma menina que não ria. Não tinha força para um espasmo de gargalhada, não lhe saía força.
Uma menina que nunca incomodava.
Ela não tinha mãos nem pés nem cabeça. Uma menina que ninguém via.

Mas pairava, uma presença.

Gata BorraAlheia

Em uma era de nenhuma vez, não havia espaço para o faz de conta.

A Gata Borralheira esperava aquele sempre onde seria feliz.

Sem contos de fada, diziam. 
Ouvia-se apenas contos de um fado.

Era só uma borra no fazer de contas.

A mulher de azul

Todos os dias no mesmo andar. O segundo. No mesmo passo. Arrastado e pulsante. No mesmo toque. Mãos leves e que desliza. Com os mesmos pisos. Os mesmos panos. Os mesmos produtos. As mesmas sujeiras.

Uma senhora já de idade. Parece uma vó querida, digo. Não, não pude ter filhos, me diz ela ainda com o seu brilho nos olhos. Uma senhora de brilho nos olhos. De um brilho que parece vida. Um brilho que parece que tem algo pra sair do corpo.

Época de Verão


“Época de verão
Criança, a vida é fácil
Os peixes pulando fora d'àgua
E o algodão, Senhor,
    O algodão está alto, Senhor, tão alto.”
(Summertime, Janis Joplin)

Dirige-se para o quintal, não pregara o olho a noite toda. pega a corda no quarto de trabalho do marido. arrasta-se mais que anda, segue para a sala, pé direito mais alto da morada. não é dona de seus passos. puxa uma cadeira, sobe  nela para encaixar a corda no caibro alto, joga a corda passando-a de um lado a outro da madeira. numa das pontas dá três nós, assegura-se de que estejam firmes o suficiente para suportar o peso do corpo. desce da cadeira com a outra extremidade da corda nas mãos, nesta faz o laço... cuidadosamente, mecanicamente, ajusta-o para o pescoço fino. dependura-se na corda, puxa e repuxa, muitas vezes, tantas que a mesma escorrega até a parede entre a sala e o quarto das crianças e ali se aloja, em segurança. novos puxões para testar a firmeza do objeto, um pouco da cal cai sobre sua cabeça, tons esbranquiçados nos cabelos a branquear... a corda deixa marcas na parede velha. será que a casa suportará o peso? sente-se tão densa! sente-se tão nada! novamente pega a cadeira - o sol anunciava o espetáculo no horizonte, precisa guardar bem tudo aquilo – esconde a corda sobre a madeira. exposta somente suas marcas na parede, ninguém há de botar reparo naquilo. esmeralda levanta antes do sol todos os dias, deixa na cama filhos e filhas dormindo, quando acordarem não terão o que comer. dor. arranjar o que colocar à mesa durante o dia. tem de garantir ao menos uma refeição por dia ou uma refeição a cada dois dias. impunha-se esta missão. deus! não fossem suas crias! pega a enxada, que o falecido deixara sempre organizada no canto de trabalho da casa e parte. olhos não tinham onde buscar lágrimas, tamanha a fundara da dor. pés, protegidos por chinelas gastas, tocam a terra seca do lugar. na vastidão terra, pedras e um pequeno riacho que vinga no outono, traz poucos tons verdes na localidade amarronzada. passa por ali.. tanta beleza no ar.. mas não vê a beleza exterior. o vilarejo é ermo, cinematográfico, muita gente da cidade grande vai até lá para gravar filmes que falam da realidade do nordestino. o cenário nasceu pronto. chega mais um grupo na cidade, esmeralda ignora, trabalha, cava em busca de um milagre. o luto pesa mais a fina tez. não vê, é vista. a magia do cinema à sua frente. a possibilidade de ganhar dinheiro como figurante. Sorteio. será a viúva. ironia do destino, a arte imitando a vida. tem certeza que o papel é dela, não sofrerá para desempenhá-lo. grava as cenas. para o cinema. vê-se na tela grande. é atriz. desperta nela uma felicidade, um sentido de vitória. forças que não sabia possuir. sente que é capaz de fazer qualquer coisa. encara a vida. encara a morte batendo a porta da memória... constantemente. diz não, um “não” rancoroso, cheio de certezas e de renascimento. a vida corre, como o riacho com cores. precisa de arte para viver. cria e recria sua realidade. constrói um castelo com sua criatividade: deposita na calçada estrelas, nas paredes fé, na mesa o alimento, na vida de cada filho a música e a poesia. surgem novos sentidos da vida. a casa é arte, atenta a quem passa. a alma está em paz. na parede da sala, entre a sala e o quarto das crianças.. marcas da corda. Dali, como reféns, somente as marcas.

A medida do gosto

Há quem consiga amar co'a alma
quando o corpo, dono dos gestos amáveis,
imerso em dura e estafante labuta, vacila?

Há quem a arte redima dos golpes
a seco nas feridas e calos, que o faça
querer mesmo o palco ao invés d'uma cama?

A medida da gota era a medida do pó

Lá fora chovia
Cá dentro secava
A medida da gota era a medida do pó

Queria chamar por Cecília
Queria falar de João
A medida do não era a medida do pó

Lá fora molhava
Cá dentro moía
A medida da dor era a medida do pó

Morte Prematura de uma Dúvida

O coração gaguejava lamentos sob o sol a pino. A garganta seca não podia mais. Os balbucios perderam-se pelo caminho. O coração gaguejava sob a solidão a pino – abandono que queimava a pele, rachava os lábios. Era assim. Um homem só neste mundo de milhões.

O coração gaguejava sobre a terra rachada, a boca rachada calava, a garganta seca rachava no silêncio. No estômago só a mágoa que engolira, a raiva que engolira e uma úlcera dolorosa – na falta do alimento, o órgão devorava a si mesmo. No intestino, vermes. Na falta dos restos que a vida lhe negara, que então outras vidas inermes se alimentassem de sua polpa escassa.

O céu sem nuvens, sol e solidão a pino. Tudo em volta era uma fogueira, ele era a lenha, um homem tão só neste mundo de milhões. Nem uma nuvem ao longe anunciava a vinda de uma gota sequer. Passara já por um bezerro todo feito de costelas que o fez salivar. Ali era tudo faminto e seco. No ventre da terra vida nenhuma vingava.

Declaração de inocência

No banco dos réus, o cérebro permanecia calado, astuto, certamente maquinando sua própria defesa, enquanto do outro lado, uma promotoria sem papas despejava verbos e verbos contra aquele pobre músculo, cujo uso - assim a língua dizia - enrijecia a alma e desprendia o corpo de sua mais fresca humanidade.

Pelo banco das testemunhas passaram fígado e rins, estômago, olhos, apêndice (este, refutado pela defesa na simples confirmação de sua franca inutilidade), mãos e genitália. Subia, agora, a voz que mais se esperava e fez-se silêncio no recinto quando, chamado ao juramento, o coração se apresentou. A língua amaciou seu tom, que antes vociferava sem calculo ou pudor, e fez do drama, que agora se inclinava diante do júri como uma orquestra silenciosa, o cenário ideal para esse depoimento. Falou o coração. Repetiu-se algumas vezes numa oratória que dizia não apenas criminoso o cérebro, veículo marginal de uma tão seca premissa, mas condenou com ainda mais veemência sua protetora, progenitora e religião. Disse, dentre outros adjetivos cujas descrições não serão aqui alarmadas, da razão: intolerante, abusiva, autoritária, insensível e frígida. Esse último, repetiu-o sete ou oito vezes, e desandou um lamento que comoveu até mesmo os ouvidos, que tentavam até ali se por na imparcialidade de orgãos sem filiação.

Na quadra.

tchdum dum
tchdum dum dum
tchdum dum
tchdum dum dum
tchdum dum
tchdum dum dum

E no cantar dos surdos a garganta da menina secava e os olhos se encharcavam.
A saliva se transformara em lágrimas.
Era bonito, por demais.
E seu coração batia:
tchdum dum
tchdum dum dum...