Futebol de várzea

São eles: Juninho, William, Chiclé, Fubeca, Janderson, Joelho, Paquá, Tinho, Fininho, Julio e Livinha – Grêmio Recreativo de Vila Rica.

Os outros: Rafael, Quero-quero, Jonatas, Edimilson, Pinho, Zé, Cabeça, Rivaldo, Ceará, Matheus e Druda – Clube Atlético Riquense.

Bola no centro, autoriza o árbitro. Mexe a bola Juninho.

- Vai ser um início nervoso, como toda final de campeonato.

Fogos, funk, torcida.

Drible impossível

Véspera da final da copa do mundo de 2014. Todos os ingressos para a partida final no Maracanã estão esgotados há meses. O mundo aguarda ansioso pela final do torneio mais assistido no planeta. Neymar, considerado o melhor jogador da atualidade, está terminando uma sessão de alongamentos quando recebe a orientação para se vestir e ir até o escritório da FIFA no Rio, para uma reunião de urgência com patrocinadores.

Ao entrar na sala indicada, Neymar encontra apenas um homem alto, de cabelos brancos, fumando um charuto, com um terno preto, de costas, falando ao celular. O homem apenas resmunga alguns “u-hum”, sentencia “Just do it!” e desliga o telefone, virando-se para o jovem craque brasileiro:

– Neymar! How are you? Take a sit, please!

O craque

Cinco reais. É quanto custa a viagem efêmera pelos recônditos lugares ainda preservados de sua mente. Por tão pouco, ele se torna o maior jogador de futebol do mundo, com sorte suficiente para ganhar três vezes seguidas na loteria. Sua família é feliz e com dentes. Veja a alegria em torno da mesa farta do café da manhã. Amor e frutas frescas de verdade e filhos sadios e direito à preguiça e passeio na praia. Tudo a baixo custo. Então, ele pode gostar do que vê no espelho e, por alguns instantes, deixar para trás os olhos mortos e a pele cheia de escaras, o medo e a solidão das ruas, a falta de prazer e de vida, os insultos da polícia e o descaso dos pedestres. Por cinco reais apenas, ele pode ser um cara de sorte.

Heroína

Heroína de verdade
sedutora fantasia
a ganhar sua liberdade
com extrema ousadia
exemplo de coragem
pesadelo da tirania
canto que voa nos ares
filha do caos, flor da vida
encanta nossas vidas
com o sonho da realidade
semente de rebeldia

Heroína
a mais forte, a mais pura
capaz de sanidade
no momento de maior loucura
ofusca a todos com sua claridade
Zomba das necessidades
mostra toda a verdade
o clarão de tempestade
na escuridão dos nossos tempos

Silêncio em melodia

Eu calei,
E divaguei nas linhas
E no corrimão vagaroso e melódico dessa sensação de asas
Lembrei-me da minha paixão pelas páginas arreganhadas
Pelos lápis de cor mordidos de boca com fome de carne
Pela minha vontade estranha de não me pintar de máscaras
De delirar de olhos bem abertos, enxergando as retinas que me olham ser quem sou
E ser eu me enche de um vazio...
Já não tenho supostas dores
Um vazio vadio,
Que não abriga rumores, nem dissabores
Sou eu pintada da minha cara, da minha pele, do meu esboço
Que tem cheiro de mim...
E sufoca as cantigas que se despercebem no fim
Rabiscam, pingam, óleo em tela
Tela em vidro,
Transparente e fino
Como um suspirar de dentro
Arredio e quente,
Como um aguardente...
E assim, sutilmente descompassada,
Com um suor escorrendo na alma
Sambo, chegando
Ao meu palimpsesto...

Cantoria em disparada

Hoje eu cantarei.

Retirarei pétala, por pétala do silêncio que engoli, e de minha boca nascerão sorrisos nunca vistos. O som da minha risada invadirá as salas mórbidas preenchidas pela monotonia da novela.

Cantarei para as panelas, para os móveis, para as plantas, cantarei na janela que por tanto tempo só suportou a fumaça do teu cigarro. E toda rua ouvirá esse gozo, toda a rua como num carnaval delirará, minha marcha cavocará corações amortecidos. Peço passagem.

Eu transe puro vagueio na melodia que já ensurdece os meus poucos decretos de realidade. Ele morreu, meu luto é uma ode. Ele morreu, meu luto é uma ode. Ele morreu, meu luto é uma ode. Meu corpo rasga todas as lembranças como numa expurgação. A canção explode, apaga as juras de amor, borra o desenho do prato, salpica pimenta no café. Corro pela casa, corro sem parar, saio para rua , o asfalto esfola meus pés, pouco importa, quero que a rua deixe esgarçada a delicadeza que sustentei com cremes de beleza.

D. Bendita

Pra quem a morte já rondava, os pudores eram lascas secas de carvalho. Ela podia voar, sem culpa, em  sonhos obscenos, trepando entre uma e outra nuvem recebendo o que o onírico, sem papas da língua, a presenteasse.

Podia dizer safadezas das mais horripilantes. Se esfregar, beijar de língua e roçar. E podia gostar daquilo. Cercada de noite, logo se aprontava: baby doll e lençol, batom em tom vermelho marrom, perfume: o de costume. Tudo obtido às custas da aposentadoria do finado.

Os corpos visitados não respeitavam gêneros, cores, nem números.

Era uma lambança...

Quero ficar com você

Ela queria sapatear, mas seus pés continuavam imóveis naquele salão, enorme, do tamanho da saudade que tinha da época em que dançava. Amélia era robusta, risonha e regada sempre a muita cachaça. Ela havia perdido o movimento das pernas quando, saindo do salão, abraçou veementemente um caminhão de lixo que estava a rondar suas madrugadas. Não dançou mais, mas a risada e a vontade de ir no salão prevaleceu, gostava dali. Vez em quando conseguia uma carona de um vizinho que passava por perto, outras vezes era passageira especial de um motorista de ônibus em treinamento. A verdade é que Amélia sempre dava um jeito de aparecer no salão. Muitas vezes chegava no final da quadrilha, mas entrava, nem que fosse pra bater palma e descolar um fiozinho de conversa sobre o salão, a dança, a quadrilha ou a saudade. Certo dia Amélia não apareceu, nem no outro e nem depois. Ninguém ficou muito surpreso - Já era hora de Dona Amélia descansar - falou um enquanto fechava o salão depois do baile. Descobriram, certo tempo depois, que Amélia tinha caído na rua, tentando pegar uma caixinha de música que estava tocando uma marchinha de carnaval da época em que ela ainda dançava, e com o rosto sangrando no chão, as pernas bambas e o coração acelerado ela repetia... "Ô balance, balancê, quero ficar com você... Entra na roda morena pra vê, o balancê, balancê".

Morrer em pé

E então o véu se abriu e ali estava a boca, suja e escancarada! Não era como imaginava mas - o desejo nem sempre condiz com as entranhas, pensou. E num lapso de Saramago quis que as pontuações desaparecessem e fluíssem com o pensamento solto e espantado, com línguas e cortes profundos, com todos os sabores sem (dis)descrição. O alimento confuso lhe subia as pernas e rabiscava o interno das coxas tantas vezes ignoradas, nos pequeninos e suaves pêlos em plumas ali, perdidos... - Pra que parar?, pensou o homem por trás do lacre. - Pra que mentir?, deixou escapar a mulher. Nuvens de cigarro querendo ultrapassar o teto; o cheiro de suor... Não só os próprios suores mas os dos tantos outros que por ali passaram. - Essa coisa gruda!, sentiram. E se lembrou de quando sua mãe dizia que pra lavar a roupa tem que se tirar bem o sabão, pra não grudar! - Só com muita água , minha filha! Mas era tanta água que, pequenina, tinha medo de se afogar... sempre teve. A água, como o gozo, trazia-lhe a morte à tona. - Quero morrer!, pensaram os dois sem saberem um do outro. A culpa espreitava tudo pelo vão da porta, culpa católica não entraria ali! Era de longe e com um sorriso no canto da boca que farejava a isca pega. Deleite! A gravata não saía e ficou assim, presa na garganta molhada. Era tanta coisa presa ali que mais essa não faria diferença. - Eu não falo, eu faço!, era seu lema. E de tanto fazer e muito calar estufou suas glândulas de gordura. Um perfeito foie grás, de gravata... Aproveitaram a sirene da rua pra gritar... e morreram... cada um ao seu tempo... em pé.

Pulso

E na medida em que girava o mundo, assistia também, girar as coisas feias. Dava as costas. E o tempo se dissolvia no infinito. Olhos em diálogos audaciosos pervertiam o conforto da pobre alma solitária. Diante do espelho, percebeu-se tão nu, fremindo em cobiça desmesurada. O ar que saía de suas narinas tinha forma. Embaçava a imagem. Tudo sucumbia só com o desejo que possuía. E girou mundo... e girava... e nele, cabia o giro... e tudo que dizia, não continha uma palavra, mas tudo fazia sentido.

vôo

De onde não havia saída. De onde não há-via os vãos, as passagens. Só espaço incolor a ser preenchido num momento desconhecido - e mesmo assim, se. Era a vertigem do susto, abismo-quase-alucinação, quando o mundo silenciou em círculos esfumaçados. Alguma ânsia não reconhecida e o corpo que corria por dentro, fugitivo imóvel. Olhos vazados em compulsão; apoios falsos em torno do vento. Respirou sem ar. De onde não havia mais, escapou nunca, até dormir em pequenos tremores atônitos à espera vazia de que parasse de girar.

Estranho - é o que se diz do silêncio

Havia algo em seus olhos. Não era exatamente dentro deles, mas na região esclerótica que os envolvia. No entorno das coisas não vistas, a bem da verdade. Ela olhava para mim negando-me o olhar. Eu, que supunha conhecê-la por tê-la visto coincidir com gestos e jeitos que antes já houvera visto, estava, no entanto, absurdamente enganado. Os seus gestos e jeitos eram distintos de qualquer outra coisa que minha memória pudesse alcançar. Eu, na verdade, a conhecia porque fazia dela a imagem do desconhecido. Mais do que qualquer outra coisa, eu conhecia o meu desconhecimento sobre ela. Julgava-a o estranho, não por estranhá-la à medida da dessemelhança contra todo o senso de uma familiaridade implícita, mas porque concebia com ela um estranho presente e absoluto - estranho apenas e, por isso, inconfundivelmente vulgar. Se ela me retribuía o julgamento? Ora, como qualquer estranho ela se limitava a dar-me respostas dúbias, ou vagas e múltiplas - o caso é que ela pouco falava ou quase nunca.

Mas entre o laconismo silencioso de suas poucas palavras, ela se libertava num esforço enorme para comunicar. Comunicava, não porque tivesse palavras para tanto, mas porque o seu silêncio era repleto de significado. De uma semântica tão natural que faria Dostoievisk sentir-se impróprio, um falastrão desmedido. Culpa também da história e do curso das coisas, que fez da língua russa essa tão áspera superfície que nos dá a impressão de estarem cuspindo e mastigando quando na verdade nos cantam ou tentam dizer-nos "te amo". O fato é que ela calava, apenas calava. Em fonemas absolutamente poéticos - eu ponderaria se não soubesse, como soube depois, que toda poesia que o silêncio contém é fruto de ternos e encantados ouvidos e não o bruto pesar de uma muda consciência.

Em todas as manhãs algo lhe faltaria

Olhou-o de soslaio, simples. Mas aquele ar frio, aquela sua expressão coagulada pôde dizer sem palavras. Soube então que ele iria embora para sempre.

Ele mastigava um ar impaciente, pigarreando às vezes, hábito irritante, o cabelo penteado de modo patético. Ela nunca gostou dele, jamais o aprovou e, no entanto, amou-o tanto. Que amor ruim e quieto, intruso. Por uma pequena fresta escapava dele, nesse instante, a intenção; por uma pequena fresta isso a invadia e todo o seu corpo murmurava, ela toda se enregelava sob a pele morna. Caminhando no ar, vinha dele: abandonar era justo.

E que importavam então as rendas e babados e o branco puro de seu vestido e sua virgindade e o padre e o olhar aprovador da família enquanto ela caminhava em direção a ele naquele dia quente, quente, sufocante, quente demais.

Friamente ela ofendeu-se: ele comera até o final. Domênica empurrou o prato e respirou, profundamente mas sem nenhum ruído. Havia vários dias que nada diziam. Mas então ele disse. Por aquela respiração curta que precede a fala ela percebeu que ele falaria, e numa parte de segundo pensou em levantar-se e sair antes que se rompesse... Quanto era o temor daquela palavra!, temia e desprezava o que quer que fosse dito por ele naquele momento. Mas ele disse, e foi então. Disse:

— Domênica.

Queda

Ela apagou a ponta do cigarro no cinzeiro lotado, ajeitou a blusa preta de lã catando uma ou duas bolinhas brancas deixadas pela máquina de lavar, mexeu-se na poltrona, inquieta. A sala quase vazia do apartamento cochilava nas quatro horas de um junho qualquer. Ela olhou para ele.

- Acabou.

As malas, as caixas, os livros e cds empilhados num canto justamente por falta de caixas, as roupas, os anos passados juntos agora encaixotados em silêncios superiormente amargos, constrangedores. Ele, sentado no tapete, olhou-a por detrás dos óculos de aros grandes, intelectualizadamente ridículos, mas que denunciavam a canseira da vista embaciada de lacans, derridas e nietzsches, os olhos acastanhados, barba por fazer.

- Talvez nunca tenha começado - ele respondeu.

Grotesco 1

Sua voz era intragável. Tantas e tenebrosas palavras despencavam de sua boca, como num jorro interminável de lodo esverdeado. Não queria mais ouvi-la, mas impossível era frear a torrente contínua de frases que insistia em derramar. Ela simplesmente 'não conseguia' fazer pausas entre as orações: mal respirava. "Mais um pouco" - pensei- "e terei que lhe conectar uma máscara de oxigênio". Não bastasse o timbre irritante, o resto todo era desagradável, os cabelos sebosos, as unhas sujas e o esmalte descascando.

Vestia-se muito mal e usava um amontoado de bijuterias horrorosas em todas articulações visíveis, como se ela própria fosse a vitrine da joalheria. Para piorar, conversava comigo de óculos escuros; e eu não tolero conversar com quem não consiga me olhar nos olhos. Escutava aquele monólogo interminável quando sucedeu o inimaginável.

Cor de rosinha

A meninazinhazinha, tão diminutivazinha, nasceu de uma cegonha cor de rosa que gostava de brincar de casinha. Quando a cegonha cor de rosa trouxe a meninazinhazinha para a sua mamãezinha, o paizão ficou feliz e orgulhoso porque não havia quem não comentasse o quanto aquela criaturazinha seria bela e doce. Principalmente, quando ficasse toda mocinha e arranjasse um maridão douradão, fortão e bem bonitão para protegê-la.

Um dia, brincando de princesinha das nuvens com duas lindas amiguinhas, um garoto chato, gordão e desbocado mandou os bibelozinhos da realeza tomarem no cu.

Coisas de quem tem medo

Temo desde pequeno
adoecer no sereno
cair e quebrar o braço
dançar e errar o passo

Temo desde criança
se machucaria a dança
se doeria o tapa
se sangraria a napa

Do que tenho medo, zelo.

Eu tenho medo do amor que tenho
Se esconder nos girassóis pequenos
Fazer carreira,
Ladeira a sumir
E acenar com o cabelo ao vento
De sorriso largo e preguiçoso
De continuar a vida

Viviam na mesma casa mas ainda se mandavam cartas

Viviam na mesma casa mas ainda se mandavam cartas.
Ela passava dias colocando oxítonas nos poemas
Ele digitava o que estava sentindo e deixava o google ajudar
Ela colocava milimetricamente as cartas embaixo da marmita dele
Que sempre antes de comer, sorria com as palavras e aquele beijo dela
E isso transformava aquele arroz com ovo em caviar
Ela descobria as cartas dele dentro do pote de feijão
E depois os colhia como quem flores recolhe
sem saber que as palavras dele, eram de Drummond
Mas a João seu amor a noite iria destinar.

Um pequeno conto sobre seus pais

Eles trocavam cartas. Ele, em sapato de trabalhador percorria ruas. Ela, em vida de mulher abraçava palavras que não lhe cabia dizer.

E trocaram cartas entre uma e outra boda. E partilhavam filhos, afetos, palavras e sapatos. E compartilhavam vidas suadas entre uma e outra jornada.

As ruas, que não têm tempo de parar, trabalham assiduamente entre uma e outra carta, as de amor, as deles. Uma carreta e um trabalhador (que não podiam se atrasar) arrastaram os seus sapatos.

Aquele que fazia seu coração disparar

Começava pelos pés. Subia para o quadril. Balançava os braços. A cabeça e o corpo todo giravam. Era contagiante. Apenas para ela.

Arabela dançava o tempo todo e em qualquer lugar. Se estava sentada movia os braços num ritmo qualquer. Deitada, tremia o corpo no compasso dos próprios roncos. De pé, rodopiava e saltava, ultrapassando qualquer pessoa na fila do banco ou do mercado. As pessoas protestavam, queriam detê-la, mas a compulsão era tanta e era tão parte dela, que, nervosa em razão dos gritos de pare, dançava mais e mais, num ritmo cada vez mais alucinante. As pessoas fugiam, se afastavam dela, a isolavam. Triste, Arabela deslizava vagarosamente, as lágrimas acompanhando os movimentos de valsa.

A pele dela decidiu desta vez

cansou-se de ser decidida
de não responder às melhores coisas
da vida
do seu corpo

as coisas que fogem da razão do outro
e encontram na sua pele um sentido de ser

então ela:

abriu-se em janela
em ar

Foi de tanto dançar

- Não se fazem mais sapatos leves como os de antigamente.

Era assim que o avô justificava sua crescente dificuldade em andar desde que perdera a conta dos tantos passos que dera.

- São coisas da idade, papai.

Olhou para a filha meneando a cabeça. Se havia algo que o aborrecia, profundamente, era ser chamado de velho.

- Velha é essa cadeira, essa mesa...
- Não comece, papai.

À mesa, tomando o café, o menino fingia desatenção. Fingia mal, porque o avô lhe interessava mais do que qualquer pessoa. Ele tinha o incrível poder de falar com as coisas.

- Essa noite o silêncio me visitou. Confidenciou o homem, olhando para a filha, com alguma intenção de provocar.

Homem Menino

Os cabelos em cachos castanhos - invadindo testa e orelhas -, e a barba mal feita, contribuem para sua aparência de garoto adulto e homem menino. Bernardo quis se tornar homem o quanto antes e agora quer parar o tempo e descansar. No colégio era o garoto cheio de espinhas, tímido e desatento, sempre a desenhar ao escutar o blá blá blá dos mestres. Hoje é o moço de barba a esconder o vestígio das espinhas, tímido e atento aos desenhos que copia diariamente de fotografias encontradas na internet. Fotografias de bailarinas, de pernas flutuantes, braços ágeis, corpos leves. Bernardo não gosta de dançar. Gosta de observar.

Os olhos castanhos de Bernardo denunciam uma mania adquirida desde a infância quando renegou os óculos de plástico. Ao observar, ao falar, ao escutar, está sempre tentando enxergar mais longe, apertando os olhos com força, como em uma tentativa de acertar o foco. Nunca quis usar os óculos para que não o julgassem isto ou aquilo apenas por conta de um acessório. Ele tem medo dos julgamentos e não julga nunca.

O Menino no Homem, o Homem no Menino

Quando percebi eu não tinha mais trejeitos de eu mesmo. Tinha era a feição de meu pai, que se repetia nos vincos da minha cara. Reconhecia um outro no jeito como via a vida toda fracassos, e no virar das mangas da camisa. Saltei para dentro dele foi sem intenção de ser outro. Ou foi ele quem saltou para dentro de mim sem perceber o que escolhia.

Agora o cabelo ia pelo vento sozinho ajeitando-se como o dele, e eu esmagando o sonho de meu filho como foi que um dia o pai fincou o pé no meu. Só um menino ele era, meu filho me olhando feito inseto, poderoso mas na desvantagem da sua pequenez. Minha voz como fio de navalha ia direto barítona diminuindo sua estatura. E eu lhe cuspindo pedras no rosto, palavras de pedra, consciente da injustiça e da potência dolorosa de cada uma. Depois de certo tempo eu mastigava as pedras antes de cuspir - elas me doíam na boca mas saíam afiadas riscando o ar até o menino meu filho.

Sobre Franciscos, meninos e homens

Chegou. Deu boa tarde. Abriu a sala. Abriu as janelas rezando para não encontrar nenhuma lagartixa sorrateira. Ligou os computadores. Reclamou do calor. Reclamou do universo quando percebeu que esqueceu sua garrafa de água. Reclamou do mundo quando lhe comunicam que irá trabalhar na quarta de cinzas. Amoleceu. Lembrou-se da panqueca do almoço e se acalmou. Os estudantes entraram. Munidos de caderninhos, folhas, vontade, décadas nas costas e muitas dúvidas. Eles sorriem para ela como se aquela cara morena fosse a moldura de um espelho. Aquelas máquinas deixaram de ser monstros e viraram mágicas para eles. Tudo devido a uma incrível explicação e prática em... mouse e teclado.

Ouviu relatos de quem tem 40, 50, 60, 70 e até 80 anos. Dizem que entrar na internet nessa idade dá mais prazer e é até mais seguro que fazer bolo de fubá. Viva o delivery da padaria. Mais seguro e menos gostoso. Mas se pensa que a interação dos idosos em um curso de Inclusão Digital se resume a ver receitas de bolos, estão tão enganados como ela estava. Chats, fotos, e-mails, mapas, pesquisas, livros, vídeos e inquietações que deixariam os adolescentes informatizados de queixo caído. É a luta de classes dos bits.

Explicou. Deu risada. Tomou um café. Explicou de novo. Explicou de novo. E de novo. Perdeu a paciência. Deu risada. Respirou. Explicou até entenderem. Percebeu que o problema era sua explicação. Mudou.

O dia que deixei as coisas de menino

“Quando eu era menino,
Pensava como menino;
Mas, logo que cheguei a ser homem,
Acabei com as coisas de menino.”

Lembro daquele dia,
Como quem quer esquecer,
Pois foi aquele o dia,
Que a ganhei sem querer,
Foi aquele o dia,
Que o conheci por doer.

Conheci a mim mesmo,
Deixei de ser menino,.
No estranho oculto da alma,
Não houve mais cultos de calma!

As Impossíveis Aventuras de Meu Amor num Outro Lado do Mundo

Num outro lado do mundo, a moça de pele encardida de suor e fumaça tentava explicar. Você não percebe, Meu Amor, que eu não posso? Que nem sei como você saiu de mim? Porque não havia mesmo espaço para mais um naquelas calçadas, apesar de elas parecerem tão longas e largas. Mas Meu Amor soltou um grunhido estranho, seus olhos imensos se arregalaram e ele regurgitou sobre ela uma baba espessa e escura como o asfalto. Era o lixo que não lhe caíra bem no estômago. A moça – eu gostaria de poder dizer seu nome, mas nem ela mesmo se lembrava. Podemos batizá-la de Moça, assim maiúscula. Moça fechou-se para dentro de si por um momento, para criar ódio. Tirou Meu Amor de perto, suspendendo-o com as duas mãos no ar, como se pudesse contaminá-la com aquele chorume que lhe escorria dos olhos e dos labiozinhos abertos. Em torno deles encontrou uma grande poça de água suja – pela manhã muito havia chovido sobre ela e Meu Amor. Foi então que ela fechou bem os olhos e imergiu a cabeça de Meu Amor na água até que ele perdesse o ar. Umas bolhinhas saltaram na superfície, ele parou finalmente de sacudir os bracinhos e tornou-se uma massa amorfa escorrendo com a água. Pronto. Agora ela podia ir trabalhar outra vez, o que fazia sempre entre o sono e a fome.

Manual mínimo do Nosso Amor

Fui hoje visitar Nosso Amor no hospital. Me vesti a caráter, fui com chapéu por causa do Sol e um punhado de Maria-sem-vergonha na mão. Lá ele estava dando uma trabalheira pros médicos e enfermeiras porque queria pegar todo mundo pra criar, pôr no colo e depois dar chute na canela e pé-na-bunda de todo mundo. Entrei, sorri e ele sorriu também em sinal de reconhecimento. Trouxe Bourbon e licor, disse. Bebemos escondidos e ele contou que se sentiria melhor se abrisse a janela. Abri. Num rabo de foguete Nosso Amor se atirou pela janela. Defenestrou-se. Ri do seu desatino e sei que foi a última tentativa do Nosso Amor de ganhar o mundo.

Nosso Amor

Acordaram juntos naquela manhã. Um, caracol e segredo do outro. Braços e pernas enrolados em sustos e sonhos incompletos.

A mulher, tranquila pediu, então, ao amado que lhe desse um filho em matéria bruta para que ela pudesse ser escultora e, assim, ele o fez. Depois, chamaram o ser amorfo de Nosso Amor.

A criatura foi moldada como uma brincadeira. Tinha um pé menor que o outro e dentes desproporcionais feitos de uma fileira de madrepérolas incrustadas no céu da boca.

Pensaram em dar-lhe asas, mas tiveram medo que os vizinhos dissessem que era adotado. Também temiam que o ser amado caísse por terra e os culpasse por não saberem voar.

Poesia sem palavras

Sou analfabeto por formação
tudo que me ensinaram
fiz questão de esquecer
a minha única escola
foi o livro aberto do mundo
onde como vagabundo
aprendi a ler de tudo

O único alfabeto que soletro
é o da linguagem das conchas
escrito pelas mãos das marés
onde leio o verso do universo

Nada sei de poesia

Nada sei de poesia.
Não sei ler nem escrever.
Sou analfabeto poético.
O que sei mesmo é prosear!

Mas ocorre, certas vezes,
quando vou parindo a prosa,
de algumas palavras se enversarem.
Se enversam sozinhas, sem mais nem menos!

Quando me dou conta,
da prosa que paria,
eis que se rebela a poesia!
Assim, totalmente à revelia!