Num outro lado do mundo, a moça
de pele encardida de suor e fumaça tentava explicar. Você não percebe, Meu
Amor, que eu não posso? Que nem sei como você saiu de mim? Porque não havia
mesmo espaço para mais um naquelas calçadas, apesar de elas parecerem tão
longas e largas. Mas Meu Amor soltou um grunhido estranho, seus olhos imensos
se arregalaram e ele regurgitou sobre ela uma baba espessa e escura como o
asfalto. Era o lixo que não lhe caíra bem no estômago. A moça – eu gostaria de
poder dizer seu nome, mas nem ela mesmo se lembrava. Podemos batizá-la de Moça,
assim maiúscula. Moça fechou-se para dentro de si por um momento, para criar
ódio. Tirou Meu Amor de perto, suspendendo-o com as duas mãos no ar, como se
pudesse contaminá-la com aquele chorume que lhe escorria dos olhos e dos
labiozinhos abertos. Em torno deles encontrou uma grande poça de água suja – pela
manhã muito havia chovido sobre ela e Meu Amor. Foi então que ela fechou bem os
olhos e imergiu a cabeça de Meu Amor na água até que ele perdesse o ar. Umas
bolhinhas saltaram na superfície, ele parou finalmente de sacudir os bracinhos
e tornou-se uma massa amorfa escorrendo com a água. Pronto. Agora ela podia ir
trabalhar outra vez, o que fazia sempre entre o sono e a fome.
Mas eis que num dos baldes em que
ela encharcava seu pano úmido e sujo, num dos baldes daquele preparo de água
turva com o que pudesse matar todos os germes e vidas que pudessem insistir em
proliferar-se sobre o chão alheio, naquela água algo debateu-se. Meu Amor! Ela
espalmou as mãos para cima, arregalou-se toda, coagulada. De súbito enfiou os
braços ali e com pressa retirou-o, lábios roxos de frio, apertou Meu Amor
contra o peito para que se aquecesse, e balançou de um lado para outro, de um
lado para outro, de um lado para outro, desajeitadamente e tão rápido que Meu
Amor teve vertigens. Acocorou-se agarrada a ele. Meu Amor, aqui eu não posso,
assim você atrapalha meu ganha-pão. Além do mais, Meu Amor, aqui não há lixo
suficiente para alimentar a nós dois, e entre você e eu, Meu Amor, Meu Amor eu
preciso escolher a mim ou a ninguém. O pequenino reclamava de fome e o estômago
dela também, um pouco mais habituado. Meu Amor estava minguado, ainda mais
franzino do que antes, e seu aspecto asqueroso percebia-se mais assim, com os
ossos saltados. No fim das contas, Meu Amor que saísse de mim só podia ser amor
minguado, torto, aleijado e sujo. Ela via-se nele, aquele ser mudo e sem
dentes, faminto e malquisto, espelho de uma vida toda de intervalos e faltas.
Meu Amor, você podia ser invisível como eu, quando você vai aprender?,
invisível como eu a vida lhe faria menos mal, passaria distante, indiferente,
reclamaria do seu cheiro fétido e seguiria adiante para acontecer nos braços de
quem pode e de quem tem, Meu Amor. Meu Amor, você não conhece nada da vida,
você não sabe o quanto ela pisa forte sobre uma cabeça fraca de sono e de fome,
você não sabe o quanto ela foge de onde há dor, o quanto ela abandona e deixa à míngua quem não nasce pra viver mas pra ser vivido, pra ser vivido pelos
outros. Meu Amor estava faminto, e Moça
percebeu ainda que no silêncio, e irritou-se muito. Apertou-o bem, esmagando sua
barriga vazia, sentou em cima dele e, na falta de panos limpos, foi com ele que
limpou a latrina, esfregando-o violentamente contra o chão até que se gastasse
e sumisse de vez.
À noite, ela ouvia mais o barulho
do sereno que o rugir distante dos carros. Encolhida com as mãos no ventre,
tentou chorar. Um cão gemia baixinho. Ela olhou em volta e viu o mundo todo
naquela rua. Sentiu seu cheiro que não era de gente, nem de bicho, era de coisa
vencida. Não pôde ver os outros que, como ela, também tentavam fazer luzir os
olhos nos faróis dos automóveis. Suspirou, enterrando poeira nos pulmões, fez um
gesto sutil riscando a substância densa do ar da cidade.
Foi quando ouviu um respirozinho,
subitamente, em curtos intervalos, o respiro de um ar que faltava. Ao seu lado
contorcia-se Meu Amor. Ainda. Pequeníssimo, mas estava ali e era ele mesmo. A Moça,
sem poder pensar se ele tinha fome ou frio, botou-o numa pequena caixa sem
poder observá-lo por muito tempo. Meu Amor até doía nos olhos, tão feio e
mirrado estava. Deitou-se quieta sob o céu sem estrelas, entre aquele
serzinho rude e um cão estranho alojado ali naquela pouca vida, cada vez mais pouca.
Mil pessoas dormiam profundamente em suas casas. Esticando o dedo mínimo,
experimentou oferecê-lo por um instante a Meu Amor. Num silêncio de tudo, ele agarrou-se
em seu dedo com desespero a ponto de quase quebrá-lo, torceu-o, mordeu com
força, e depois se acalmou segurando-o, e aquele dedo lhe parecia imenso em seu
mundo de tão pequena estatura e tanta necessidade. Suspirou num milésimo de
segundo. A Moça deixou-se estar, fechou os olhos, e acordou dia seguinte sem
cão nem Meu Amor, acordou e nem moça era mais, acordou reclamando de fome num
estranho ventre outro, num lado outro e qualquer do mundo.
A Menina, os grunhidos e os bichos oportunistas
ResponderExcluirDe tão pequena se fez nuvem. E fumaça, que sumiu no céu. Diferente do que fora, mas não distante do que viveu. Sumiu menina. Sumiu no mundo de meu deus e não fez falta a ninguém. Agora se me permitem elucidar, vou narrar os fatos como deve seguir a lógica dos amestrados. Nasceu XX, que assim era em cromossomo, pois a aparência: amorfa. Sem forma de vida, com ossos cobrindo os cabelos e dentes na boca, mas do estômago. Já brotou em fome. Já veio trabalhando e em espaços espaçados uma ou outra lambida em restos de embalagens.
Seu destino traçado em lixo - assim o mundo a percebia. Resto de aborto do ventre mais seco que também virou fumaça.
Cresceu, pouco, entre ratos e restos. Gente nunca viu, pois seu povo não era de se notar.
Algum dia alguém lhe deu um nome, em graça, Menina. Não lhe cabia ser mais do que as outras Meninas que certamente virariam, como ela, fumaça. Então chamou-se assim: Menina.
Fala não, nunca aprendeu. Grunhidos. E desse jeito se entendiam.
Eram todas e todos Meninas e Meninos, uns maiores, outros mais fortes e outros sem eira nem beira. Ali rastejavam e disputavam terreno contaminado com urubus e qualquer outro animal oportunista.
Certo dia, ou melhor certa vez, já que aqui os dias não cabem em vocabulário, sendo esses privilégios dos que os aproveitam, Menina em meio as escavações, na grande montanha imprestável, por dentre as sobras fétidas, viu uma estrela.
Estrelas eram comuns quando por um instante a fome lacerava o fio de vida e em tontura a pequena repugnante rodopiava até pousar tranquila a ver estrelas, se fosse noite. Assim, naquele alto, pequenos pontinhos piscavam, ela cerrava os olhos e preenchiam o vazio do saco que tinha por dentro, logo abaixo das costelas. Assim ela acreditava, já que tudo eram sacos, restos e embalagens, ela só poderia ser um grande saco cheio de coisas ruins por dentro. Mas aquela estrela estava lá, no meio dos outros tantos sacos e barrancos e brilhava, mas que as do céu.
Não teve dúvidas, com seus dedos privados de carne, tocou a estrela, lambeu e colou na testa. Estava linda. Ela piscava. E foi notada. Os grunhidos, os urubus, os ratos, os bichos oportunistas, Meninas e Meninos notaram e num rodopio todos cerraram seus olhos e devoraram sua direção. A fome da miséria é fome de vida e ao piscar ela existiu, por poucos instantes, mas existiu. E devoraram até seus ossinhos puídos e mirrados, que lhes derreteram nas bocas como pó de giz. E de tão pequena se fez nuvem. E fumaça, que sumiu no céu.
A MULHER QUE PARIU UM SILÊNCIO
ResponderExcluirNasceu sem um grito sequer. Sua mãe parara de sofrer. O médico anunciou, quase dois dias depois, meio sem conseguir esconder um pesar: é menina.
Cresceu tentando ouvir o que as pessoas diziam antes e depois das palavras. Ficava intrigada com o ar que entrava boca adentro para dar fome à ideia que seria expulsa pelos lábios. Como quando seu pai lhe dera boneca vestido rosa cozinha castigo perna cruzada recato, mas não lhe explicara porque.
Menstruou sem que sua mãe lhe anunciasse o sangue, sem dar nome nem motivo. Só lhe restou a água para lavar e mais silêncio. Mas sentia um barulho dentro de si que jamais sentira antes.
Foi estuprada por um desautorizado no caminho para o trabalho. Não gritou. Ele fez ameaças velozes de vai e vem e caiu quieto e satisfeito após um último tapa em suas carnes.
Um dia, enquanto faxinava mais uma casa, ouviu sua patroa quase dizer que não limpava a casa para ter mais tempo para fazer coisas de mulher. Lembrou que tinha que chegar em casa e fazer o feijão e estender a roupa e lavar o banheiro e varrer a sala e limpar o quarto comerbanhardormir. Suspirou, sem fazer som para não incomodar a patroa.
Ao entardecer, já mãe de tantos, surpreendeu-se com sua casa vazia despejada pela prefeitura que alegou juridiquêz para tirar tudo dalí, sem querer saber um A. O homem autorizado que a esperava só era papel, nem palavra.
Neste dia, foi até o marco zero da cidade e, com toda força de sua vida, pariu um silêncio que fez a noite chegar para sempre.