Sobre Franciscos, meninos e homens

Chegou. Deu boa tarde. Abriu a sala. Abriu as janelas rezando para não encontrar nenhuma lagartixa sorrateira. Ligou os computadores. Reclamou do calor. Reclamou do universo quando percebeu que esqueceu sua garrafa de água. Reclamou do mundo quando lhe comunicam que irá trabalhar na quarta de cinzas. Amoleceu. Lembrou-se da panqueca do almoço e se acalmou. Os estudantes entraram. Munidos de caderninhos, folhas, vontade, décadas nas costas e muitas dúvidas. Eles sorriem para ela como se aquela cara morena fosse a moldura de um espelho. Aquelas máquinas deixaram de ser monstros e viraram mágicas para eles. Tudo devido a uma incrível explicação e prática em... mouse e teclado.

Ouviu relatos de quem tem 40, 50, 60, 70 e até 80 anos. Dizem que entrar na internet nessa idade dá mais prazer e é até mais seguro que fazer bolo de fubá. Viva o delivery da padaria. Mais seguro e menos gostoso. Mas se pensa que a interação dos idosos em um curso de Inclusão Digital se resume a ver receitas de bolos, estão tão enganados como ela estava. Chats, fotos, e-mails, mapas, pesquisas, livros, vídeos e inquietações que deixariam os adolescentes informatizados de queixo caído. É a luta de classes dos bits.

Explicou. Deu risada. Tomou um café. Explicou de novo. Explicou de novo. E de novo. Perdeu a paciência. Deu risada. Respirou. Explicou até entenderem. Percebeu que o problema era sua explicação. Mudou.

Ela pensa se essas meras aulas tem uma importância de fato na vida daqueles adultos. Mais que ter um e-mail ou fazer download de um filme, eles estão lá para matar monstros. Lutar e vencer o medo do computador, a ideia de que são incapazes de aprender a manuseá-lo, a desconfiança de filhos e parentes, a desconfiança em si. Estão lá para provar para si que são capazes de aprender. Totalmente capazes de dominar a máquina que de monstruosa não tem nada e rir dela e da vida quando aprendem a criar uma pasta, com seu nome. Coisa de outro mundo no Belém. Quantos monstros matamos ao longo da vida? Quantas vezes morremos na luta? Quantas vezes a vergonha e o medo venceu? Parou de perguntar.

Deu risada. Explicou. Pensou. Explicou. Tomou água. Explicou. Aprendeu. Ensinou. Entregou as folhas de exercícios teóricos porque mais que aprender a lidar com monstros é preciso aprender sobre eles. O melhor método de vencer o inimigo é saber de sua história. Lá vem o chato do Steve Jobs. Eis que depois de 20 minutos o mundo cai. A aula acaba. Todos entregam. Todos saem. Menos um. Não é mouse nem teclado, máquinas não amam e nem andam.

Francisco vai à sua mesa e ela se espanta com suas lágrimas.

- Professora, me desculpe. Pra mim não dá. Eu tentei, lutei, vim pra cá sempre, estudei e aprendi algumas coisas. Mas não consegui. Estou desistindo. Sou burro. A professora tenta entender o que houve e acalmar aquele homem com lágrimas de menino.

- O que houve Francisco? Calma! Cada um tem seu tempo para aprender.. é assim mesmo. Vamos de pouquinho em pouquinho.

Francisco limpa as lágrimas com a mão de homem com marcas do tempo e mostra a folha de exercícios em branco.

- Eu não sei ler e escrever direito. No interior não temos tantas oportunidades. Fui pro Mobral* com 17 anos, era um curso de 4 meses que terminei em 2, a professora até me deu parabéns. Depois fui em uma escola e entrei na 2ª série. Até que um dia, a empresa onde estava trabalhando falou pra eu mudar de turno, mas de noite era a hora de ir pra minha escola. Não tive escolha, ou era mudar e sair da escola ou continuar na escola e perder o emprego. Passaram-se 40 anos, eu me aposentei e até hoje não sei ler e escrever direito. Tudo que a empresa me deixou foram as marcas na mão. Fiz até a 2ª série. Me perdoe professora. Me perdoe.

A professora ficou uns segundos sem saber o que dizer. Aquele homem que chorava como menino a fez ter reação de menina. Pensou na educação do país, no capitalismo, no dinheiro, nos computadores, no Lula, na Dilma e até no FHC, pensou no que poderia dizer, no que poderia fazer. Pensou que ela era inútil assim como aquelas máquinas que deveriam ser monstros mesmo, sugando a dignidade das pessoas. Pensou em sair correndo por falta das palavras. Teve certeza que a empresa que Francisco trabalhou e a empresa que Franciscos trabalham deixam mais que marcas nas mãos, deixam cicatrizes na vida.

Levantou, deu três passos e abraçou Francisco já que as palavras não vinham. Disse pra ele voltar na próxima quarta, que ela ia fazer outros tipos de exercícios. Ele acatou e foi embora envergonhado. Sozinha, aquela menina chorou. Chorou por Francisco, por Maria, por todas as mulheres e meninas. Chorou porque as palavras ainda não vinham. Chorou porque só podia chorar. Chorou porque as empresas não deixam marcas apenas em Franciscos. Teve vontade de ir embora da Terra e nunca mais voltar. Pensou que suas aulas eram tolas e o quanto aqueles inofensivos exercícios a deixaram com a sensação de sangue nas mãos. Sentiu-se responsável pelo sofrimento daquele homem que chorou em sua frente feito menino. Entendeu porque chamavam aquelas máquinas de monstros. Agora as marcas que Francisco disse que tinha nas mãos, eram dela também.

Chorou. Bebeu água. Pensou. Chorou mais um pouco. Aquietou-se.

Sem mais exercícios teóricos para Francisco. Sem mais lágrimas e sem mais marcas. A professora pediu perdão aos Franciscos. Iria continuar lutando por eles votando, protestando, lendo, se indignando.

Pediu perdão a Francisco. Mas o único jeito que ela consegue lutar com ele é com aquele monstro que faz do mouse suas garras e com aquele livro de alfabetização que ela vai levar. Na nossa incapacidade de abraçar Francisco e Franciscos, somos todos meninos. Nos perdoe Francisco.

A professora pensou que na sala dos seus sonhos, nenhum ser humano seria obrigado a largar a escola para ter o que comer no fim do mês, escola dos seus sonhos, a informática nunca seria estopim para fazer as pessoas chorarem e os cursos de inclusão seriam desnecessários na redundância da inclusão automática, no país dos seus sonhos, nenhum homem de mãos calejadas do tempo e trabalho não choraria por não saber ler e escrever, no mundo dos seus sonhos nenhuma menina pensaria que mudar a vida do Francisco fosse mais urgente que mudar a vida dos Franciscos do mundo, na vida de seus sonhos as marcas nas mãos e na vida, seriam apenas lembrança de tempos bons, cicatrizes de felicidade, quebrar a perna de tanto rir, ter rugas de tanto ler, pinos nos ossos de tanto lutar, marcas nas mãos seriam só reflexo da tentativa de alcançar o céu, tão longe, tão perto.

Os monstros que matamos, as lutas que vencemos e aquelas que perdemos, tudo em um mundo perfeito onde somos todos meninos, somos todas meninas, somos todos Franciscos.

* O Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) foi um projeto do governo brasileiro, criado pela Lei n° 5.379, de 15 de dezembro de 1967, e propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores condições de vida.

Um comentário:

  1. Ela mal sabia ler. Escrever então...

    Ela não sabia ler, e tinha dificuldade de entender o mundo. Achava que não entendia o mundo porque não lia como as outras pessoas.

    Por não ler, não sabia que o mundo era todo torto mesmo... E que saber ler não o faria parecer menos injusto...

    E por nem ler, não escrevia. E não escrevendo, não visualizava as palavras, as suas próprias palavras. Não via suas palavras e achava que elas não existiam. Por não escrever, não percebia o quanto as palavras lhe eram íntimas e as coisas tão bonitas que ela construía utilizando de suas companheiras palavras. Mas, ela que não via suas palavras, não percebia o quanto elas eram suas companheiras, e se sentia só.

    ResponderExcluir

Neste jogo autoral não são permitidos comentários aos textos. Este formulário de comentários deve ser utilizado exclusivamente para postar textos autorais ou de autoria de terceiros, inspirados diretamente na (ou lembrados a partir da) postagem a ser comentada. E mesmo os que não estejam cadastrados como jogadores-autores podem postar textos nos comentários. Contamos com a colaboração de todos para o bom andamento do jogo.