- Não se fazem mais sapatos leves como os de antigamente.
Era assim que o avô justificava sua crescente dificuldade em andar desde que perdera a conta dos tantos passos que dera.
- São coisas da idade, papai.
Olhou para a filha meneando a cabeça. Se havia algo que o aborrecia, profundamente, era ser chamado de velho.
- Velha é essa cadeira, essa mesa...
- Não comece, papai.
À mesa, tomando o café, o menino fingia desatenção. Fingia mal, porque o avô lhe interessava mais do que qualquer pessoa. Ele tinha o incrível poder de falar com as coisas.
- Essa noite o silêncio me visitou. Confidenciou o homem, olhando para a filha, com alguma intenção de provocar.
- E o que ele disse?
A mãe, incomodada, lançou-lhe aquele olhar de mil palavras:
- São coisas da cabeça do seu avô.
Ela andava preocupada com os devaneios do pai. De uns tempos para cá, era cada vez mais comum encontrá-lo sentado na calçada, com o olhar distante, respondendo perguntas para o nada e gargalhando de piadas que só ele ouvia. Outro dia, declarou para uma velha laranjeira de galhos retorcidos, que ele mesmo plantara há muitos anos no quintal, que também a amava.
Chateado, o avô levantou-se resmungando alguma coisa sobre sapatos e foi fumar seu cigarro de palha à beira da calçada. Já adivinhava a chegada do neto porque era sempre assim pelas manhãs. Após a previsível discussão sobre sua sanidade mental, ele saía e o menino logo dava um jeito de fugir da vista da mãe para sentar-se ao seu lado e ouvir o que as coisas tinham a dizer.
- Sua mãe é uma boa moça, mas é muito incrédula – dizia, à meia boca, sorrindo e piscando discretamente para o neto. O menino não sabia o que significava incrédula, mas adorava aquela cumplicidade com o adulto mais vivido que conhecia.
O avô dizia que o sol nascia cantando e que sua voz era grave e majestosa como a de um rei. Contava que cada pássaro tinha uma história de amor, que as estrelas passavam as madrugadas fazendo fofoca sobre a vida alheia e que o vento tocava rabeca só para espantar a solidão do tempo.
Mas, de todas as vozes a do silêncio era a mais confusa porque ele tinha o dom de imitar a voz de todo mundo.
- Ontem à noite, no fundo dos meus ouvidos, eu ouvi a voz de sua avó. Mas eu sei que era o danado do silêncio.
- E o que foi que ele disse?
- Venho te buscar numa tarde laranja. E dizendo isso, o avô pareceu distanciar-se no tempo.
O horizonte ainda é uma realidade num lugarejo sem muros, nem prédios e era para lá que ele olhava. Naquela tarde, enquanto o sol, cansado de cantar, ocupava-se em colorir o céu, ele esperava.
Então a enxergou. Estava linda como da primeira vez em que a viu dançando nos festejos de São João. Vestia uma saia longa e trazia os cabelos castanhos escuros trançados de lado. Tinha cara de índia e bochechas rosadas. Era toda árvore, mas tinha nome de flor.
- Rosa!
E ela sorriu estendendo-lhe a mão: - Quero dançar! - disse o silêncio imitando a voz da mulher. - Mas, tire os sapatos. São muito pesados.
E foi descalço, sorrindo e de olhos abertos para o horizonte que o encontraram sem respiração naquela tarde alaranjada. Parecia feliz.
O menino, embora não ouvisse, teve a certeza de que o vento tocava sua rabeca enquanto uma borboleta amarela, que insistia em ficar por perto, segredava a todos num levíssimo sussurro: - Foi de tanto dançar!
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