Queda

Ela apagou a ponta do cigarro no cinzeiro lotado, ajeitou a blusa preta de lã catando uma ou duas bolinhas brancas deixadas pela máquina de lavar, mexeu-se na poltrona, inquieta. A sala quase vazia do apartamento cochilava nas quatro horas de um junho qualquer. Ela olhou para ele.

- Acabou.

As malas, as caixas, os livros e cds empilhados num canto justamente por falta de caixas, as roupas, os anos passados juntos agora encaixotados em silêncios superiormente amargos, constrangedores. Ele, sentado no tapete, olhou-a por detrás dos óculos de aros grandes, intelectualizadamente ridículos, mas que denunciavam a canseira da vista embaciada de lacans, derridas e nietzsches, os olhos acastanhados, barba por fazer.

- Talvez nunca tenha começado - ele respondeu.

Ela respirou fundo, impaciente. Com ele, com o mundo. Tamborilou as unhas vermelhas no couro da poltrona, um disco da Maysa, mundos caindo, apanhou o maço de cigarros dentro da bolsa.

- Essa conversa me entedia - ela retrucou.

Ele sabia. Sabia que ela desejava feri-lo.

Ela sabia. Sabia que ele desejava feri-la.

Trancaram-se em si mesmos, aguardando o táxi.

Ela fumou um terceiro cigarro, tomou café andando de um lado para outro na sala agora oca de acontecimentos, mas não deixando a desejar de lembranças, risos, filmes do Lynch ardorosamente discutidos, sexo, juras de amor amareladas, mas verdadeiras, pelo menos no momento. As noites deliciosamente estranhas ao lado dele. Ele, ajeitando os óculos, procurou um Bataille naquelas caixas a fim de matar o tempo, espiando de soslaio o movimento dela, pensando em todos os livros que já lera, se adiantariam de alguma coisa para a dor que estava sentindo, se serviriam ao menos como uma barreira que ele pressentia perfeitamente derrubável, e o estrondo que faria naquele silêncio.

Permaneceram calados. E saber que um dia, tinham falado tanto.

De repente o táxi chegou.

A despedida foi sem olhar verdadeiramente nos olhos um do outro.

E saber que um dia, tinham se olhado tanto.

Ela embarcou quieta, o carro desapareceu numa esquina.

Ele olhou novamente a sala quase vazia.

E saber que um dia, tinham se amado tanto.

Fechou os olhos. Deixou se arrastar por mágoas vermelhas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Neste jogo autoral não são permitidos comentários aos textos. Este formulário de comentários deve ser utilizado exclusivamente para postar textos autorais ou de autoria de terceiros, inspirados diretamente na (ou lembrados a partir da) postagem a ser comentada. E mesmo os que não estejam cadastrados como jogadores-autores podem postar textos nos comentários. Contamos com a colaboração de todos para o bom andamento do jogo.