Grotesco 1

Sua voz era intragável. Tantas e tenebrosas palavras despencavam de sua boca, como num jorro interminável de lodo esverdeado. Não queria mais ouvi-la, mas impossível era frear a torrente contínua de frases que insistia em derramar. Ela simplesmente 'não conseguia' fazer pausas entre as orações: mal respirava. "Mais um pouco" - pensei- "e terei que lhe conectar uma máscara de oxigênio". Não bastasse o timbre irritante, o resto todo era desagradável, os cabelos sebosos, as unhas sujas e o esmalte descascando.

Vestia-se muito mal e usava um amontoado de bijuterias horrorosas em todas articulações visíveis, como se ela própria fosse a vitrine da joalheria. Para piorar, conversava comigo de óculos escuros; e eu não tolero conversar com quem não consiga me olhar nos olhos. Escutava aquele monólogo interminável quando sucedeu o inimaginável.

Dentro de sua boca mais que falante, havia uma pequena massa branca e móvel, numa localização correspondente ao pré-molar inferior esquerdo, que estava solto. Enquanto a detestável mulher continuava a me aterrorizar, aquele que deveria ser seu dente, movia-se de um lado para outro com malemolência, envolvido vezes pela língua, ora entrecoberto pelo lábio. "Vai cair", mas o joão-bobo continuava lá, jingando pra todos os lados e diagonais possíveis.

Então a conversa sem fim começou a tomar ares de diversão. Imaginava aquele dente finalmente se soltando e sendo engolido. Numa breve pausa em que faria, somente para não se engasgar, a mulher se recomporia e fingindo nada ter ocorrido, continuaria a conversar, banguela. Ou melhor, aquele pedaço de osso saltaria por entre seus lábios e cairia ao chão, provocando-me um acesso de riso, ao que ela responderia com um pequeno achaque nervoso: "Esses profissionais de hoje! Você sabe, menina, que fui semana passada num dentista e ele havia me consertado esse dente, mas veja que o diabo caiu! Aliás, você não imagina..." e alinhavaria uma observação completamente desnecessária sobre a aparência jovial do odontólogo, ou ainda me contaria o imprevisto que acontecera no trânsito a caminho do consultório, e assim continuaria, infinitamente, emendando um assunto no outro.

Subitamente ela se levantou e pediu pra tomar água. Tamanha falação havia lhe dado sede, afinal. Depois de servir-se com um copo, sentou-se novamente e desatou a discutir algum assunto sem nenhuma relevância. E foi nesse momento que percebi que aquela massinha branca não era um dente "amolecido" e sim... um pedaço de comida! Uma onda de repulsa lancinante percorreu toda minha coluna vertebral, arrepiando-me, e culminou numa eructação que elegantemente consegui camuflar.

Eis que então a massa se destacou da superfície do pré-molar (este sim firmemente aderido à arcada dentária) e começou a dançar na ponta de sua língua , prestes a despencar em qualquer momento. E em todos as sílabas iniciadas com "L" e "D" o pedaço de comida parecia querer saltar em meu colo.

Comecei a discretamente empurrar minha cadeira para trás, numa tentativa de fugir ao sórdido e único final que eu conseguia enxergar para a história. Empenhava-me, em vão, a afastar os pensamentos horripilantes que por ora assaltavam minha mente (qual alimento seria, há quanto tempo o teria comido, desde quando aquela "coisa" já fermentava em sua boca), enquanto a bolinha branca sambava por entre lábios e língua, cada vez de tamanho menor (dissolvia-se?) sem nunca parar de rebolar. Minha vontade era de lhe oferecer um copo de água, mas a única ação que conseguia empreender era a de ficar parada, contemplando a cena de horror.

Finalmente, após inúmeros ensaios mentais e múltiplas tentativas de interrompê-la no seu discurso ilimitado (o máximo que conseguia dizer eram interjeições desajeitadas, que não a faziam sequer escutar-me), disse a frase que deveria ter dito há tempos, e que a fez demover-se da empreitada de me assassinar de pavor: "A senhora me dá licença, que estão me chamando na outra sala". Levantei-me pra sair. Como foi fácil! E eu há séculos, sendo soterrada por uma montanha de palavras descabidas, querendo morrer ou matar, sentindo ódio de toda humanidade e, principalmente de Deus, que fez nascer aquela pessoa detestável!

Ela virou-se pra mim, e já caminhando para a porta, disse: "Ah, então volto outro dia." E a partícula repulsiva, putrefata, de substâncias agora muito mais ricas em microorganismos que nutrientes, saltou de sua cavidade oral, e num espetaculoso salto ornamental, (durante o qual eu imaginei que pudesse estar voando em minha direção, como um exocet) caiu e grudou na saliência que o bico de seu seio fazia na camiseta. A mulher despediu-se. Caminhou desengonçadamente até a porta, com aquele fragmento repugnante de alimento ancorado na blusa, provavelmente à busca de mais um interlocutor mudo e paciente.

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