Em todas as manhãs algo lhe faltaria

Olhou-o de soslaio, simples. Mas aquele ar frio, aquela sua expressão coagulada pôde dizer sem palavras. Soube então que ele iria embora para sempre.

Ele mastigava um ar impaciente, pigarreando às vezes, hábito irritante, o cabelo penteado de modo patético. Ela nunca gostou dele, jamais o aprovou e, no entanto, amou-o tanto. Que amor ruim e quieto, intruso. Por uma pequena fresta escapava dele, nesse instante, a intenção; por uma pequena fresta isso a invadia e todo o seu corpo murmurava, ela toda se enregelava sob a pele morna. Caminhando no ar, vinha dele: abandonar era justo.

E que importavam então as rendas e babados e o branco puro de seu vestido e sua virgindade e o padre e o olhar aprovador da família enquanto ela caminhava em direção a ele naquele dia quente, quente, sufocante, quente demais.

Friamente ela ofendeu-se: ele comera até o final. Domênica empurrou o prato e respirou, profundamente mas sem nenhum ruído. Havia vários dias que nada diziam. Mas então ele disse. Por aquela respiração curta que precede a fala ela percebeu que ele falaria, e numa parte de segundo pensou em levantar-se e sair antes que se rompesse... Quanto era o temor daquela palavra!, temia e desprezava o que quer que fosse dito por ele naquele momento. Mas ele disse, e foi então. Disse:

— Domênica.

“Domênica”, ele disse, seguido de um ponto final sem reticências, definitivo, decidido a cumprir sua função de fim – o que a fez compreender que aquilo era só, era somente o que ele diria: seu nome. Seu nome preenchido de toda ela e dos anos de pausa que viveram, dizia tudo aquela palavra quando vinda da boca daquele homem, a acusava e diminuía, diminuía... Ela, vulnerável como um anão: constantemente observada a carregar sua pequenez. Seu nome, seu nome a açoitava cheio de piedade, a feria preenchido de toda ela. E ela vazia.

A pronúncia bruta de cada fonema de seu nome lhe dizia que ela era insuficiente.

Lentamente ela se levantou, e foi lentamente que caminhou até o quarto. Caminhava por dentro de si, pisoteando-se, esmagando-se, indefinida.

Nada deveria movimentá-la.

Vestiu o melhor dos vestidos que possuía, e adquiriu ares de dignidade. Penteou-se longamente, para cada lado cem vezes, e prendeu rigidamente os cabelos. Olhou descontente o espelho: o coque entortava-se. Ausentou-se do quarto no quarto, durante vários minutos, olhos vidrados. Quando retornou, achou bom o penteado. E foi cuidar das coisas da casa.

Na manhã seguinte ele já fora embora, e ela conviveu com uma solidão saborosa. Respirava melhor até, respirava o silêncio, e este lhe enchia os pulmões vigorosamente. Havia dormido melhor por aproveitar o maior espaço da cama em que só ela havia, sem barulhos do sono alheio, sem movimentações dos sonhos de outrem. Não estava feliz, mas sentia-se assim um pouco mais ela. Aquela falta então lhe somara algo? Sentia-se vingada, um pouco, pelo bem estar que aproveitava; repetia-se sorrateira e silenciosamente que ganhara algo, ganhara algo então, viu? Viu?

Mas aconteceu que semanas passaram-se escorregadias, e ela percebeu que não sabia fazer nada com o que ganhara. E então se abraçaram, ela e a coisa ganha, e despediram-se. Ela despediu-se de tudo desde então. De Paulo também, finalmente, mas sem que ele estivesse por perto para de algum modo acenar. Viveu a partir desse tempo sempre por uma despedida, como se a cada dia algo escapasse pelas frestas das janelas. Antes de dormir, suspiros muito longos e profundos, com medo de acordar e perceber mais uma falta, mais uma partida, talvez uma parte dela mesma que não suportasse sua companhia perdida, seus ares de abandono. E a vida não a desapontava. Em todas as manhãs algo lhe faltaria.

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