Havia algo em seus olhos. Não era exatamente dentro deles, mas na região esclerótica que os envolvia. No entorno das coisas não vistas, a bem da verdade. Ela olhava para mim negando-me o olhar. Eu, que supunha conhecê-la por tê-la visto coincidir com gestos e jeitos que antes já houvera visto, estava, no entanto, absurdamente enganado. Os seus gestos e jeitos eram distintos de qualquer outra coisa que minha memória pudesse alcançar. Eu, na verdade, a conhecia porque fazia dela a imagem do desconhecido. Mais do que qualquer outra coisa, eu conhecia o meu desconhecimento sobre ela. Julgava-a o estranho, não por estranhá-la à medida da dessemelhança contra todo o senso de uma familiaridade implícita, mas porque concebia com ela um estranho presente e absoluto - estranho apenas e, por isso, inconfundivelmente vulgar. Se ela me retribuía o julgamento? Ora, como qualquer estranho ela se limitava a dar-me respostas dúbias, ou vagas e múltiplas - o caso é que ela pouco falava ou quase nunca.
Mas entre o laconismo silencioso de suas poucas palavras, ela se libertava num esforço enorme para comunicar. Comunicava, não porque tivesse palavras para tanto, mas porque o seu silêncio era repleto de significado. De uma semântica tão natural que faria Dostoievisk sentir-se impróprio, um falastrão desmedido. Culpa também da história e do curso das coisas, que fez da língua russa essa tão áspera superfície que nos dá a impressão de estarem cuspindo e mastigando quando na verdade nos cantam ou tentam dizer-nos "te amo". O fato é que ela calava, apenas calava. Em fonemas absolutamente poéticos - eu ponderaria se não soubesse, como soube depois, que toda poesia que o silêncio contém é fruto de ternos e encantados ouvidos e não o bruto pesar de uma muda consciência.
Certa vez, ela pronunciou o meu nome. Calei-me frente àquela imagem sonora que delicadamente assumia proporções de colosso. Em seguida me disse: "Estou te escrevendo uma história". Pensei tratar-se do acaso de uma sentença irônica ou sarcástica qualquer. Mas não poderia ser, pois quase pude ver as palavras transbordando-lhe por entre os lábios, enquanto os olhos apontavam-me a direção dos ouvidos. E disse-lhe, então, que esperaria, ansioso, como o século XIX esperou Tolstoi por escrever as mais de 1000 páginas de "Guerra e paz". E ela, com o mesmo silencioso tratamento que antes me dera, de uma literatura sem prosa, fez-me esperar.
E nunca mais se ouviu uma palavra sequer.
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