Quando percebi eu não tinha mais trejeitos de eu mesmo. Tinha era a feição de meu pai, que se repetia nos vincos da minha cara. Reconhecia um outro no jeito como via a vida toda fracassos, e no virar das mangas da camisa. Saltei para dentro dele foi sem intenção de ser outro. Ou foi ele quem saltou para dentro de mim sem perceber o que escolhia.
Agora o cabelo ia pelo vento sozinho ajeitando-se como o dele, e eu esmagando o sonho de meu filho como foi que um dia o pai fincou o pé no meu. Só um menino ele era, meu filho me olhando feito inseto, poderoso mas na desvantagem da sua pequenez. Minha voz como fio de navalha ia direto barítona diminuindo sua estatura. E eu lhe cuspindo pedras no rosto, palavras de pedra, consciente da injustiça e da potência dolorosa de cada uma. Depois de certo tempo eu mastigava as pedras antes de cuspir - elas me doíam na boca mas saíam afiadas riscando o ar até o menino meu filho.
Ele se defendia, rosto baixo, e ia catando as pedras como quem um dia pode precisar delas. Para não correr risco de depositar todas no seu peito até pesar demais no seu coração, até o coração ir parar no dedo do pé. Ele podia sair agora. Mas não. Permaneceu ali imóvel a contar as pedras. Nunca fosse malcriado e podia sair sempre. Mas ele não ouvia e era eu. Eu ali nele tão menino sob a sola de meu pé, e o pulso de meu pai se remexendo dentro de meus punhos fechados.
Por que não podia ser aquele menino o meu porvir - e não eu a sua foz?
Agora o cabelo ia pelo vento sozinho ajeitando-se como o dele, e eu esmagando o sonho de meu filho como foi que um dia o pai fincou o pé no meu. Só um menino ele era, meu filho me olhando feito inseto, poderoso mas na desvantagem da sua pequenez. Minha voz como fio de navalha ia direto barítona diminuindo sua estatura. E eu lhe cuspindo pedras no rosto, palavras de pedra, consciente da injustiça e da potência dolorosa de cada uma. Depois de certo tempo eu mastigava as pedras antes de cuspir - elas me doíam na boca mas saíam afiadas riscando o ar até o menino meu filho.
Ele se defendia, rosto baixo, e ia catando as pedras como quem um dia pode precisar delas. Para não correr risco de depositar todas no seu peito até pesar demais no seu coração, até o coração ir parar no dedo do pé. Ele podia sair agora. Mas não. Permaneceu ali imóvel a contar as pedras. Nunca fosse malcriado e podia sair sempre. Mas ele não ouvia e era eu. Eu ali nele tão menino sob a sola de meu pé, e o pulso de meu pai se remexendo dentro de meus punhos fechados.
Por que não podia ser aquele menino o meu porvir - e não eu a sua foz?
Pedras
ResponderExcluirSendo um tipo de gente que se alimenta do que a vida oferece, ela engolia pedras. Desde sempre grandes pedras, desde menina pedras pequenas, uma por uma.
Aos quinze não pode dançar valsa, aos vinte secou-lhe a saliva, aos trinta pariu dois tijolos, um macho e um fêmea e, como não choraram, os engoliu.
Aos oitenta era puro peso. E foi num dia, ao arrastar-se lentamente, que pessoas com hálito de sopa e água de rosas lhe disseram contundentes: Você pesa para o mundo!
Abriram-lhe a goela e lá meteram dedos e mãos. Foi preciso quinze minutos para o estômago revirar a dura matéria por anos inerte.
Mas as pedras, por quantidade e dimensões, não passavam de volta e a velha só vomitou duas lágrimas, um choro de recém-nascido, uma oração inacabada, o sobrenome de seus avós e um assobio de pescador.
Continuou pesando para o mundo e resolveram atirá-la ao mar. Afundando, delicada como bailarina-borboleta, sentiu-se flutuar. Desprezando o fôlego, sorriu para o colorido dos cardumes e para a beleza das anêmonas. Espantou-se, lá no fundo havia flores!
- Devia ter nascido peixe – pensou...
Sendo um tipo de gente que se alimenta do que a vida oferece, ela engolia gente.
ResponderExcluirDesde sempre gente grande, desde menina gente pequena, uma por uma.
Gente boa, gente ruim, gente alta e gente baixa. Mas seu tipo preferido de gente para comer, eram as que belamente escreviam.
Aos quinze engoliu o primeiro amor que lhe escrevera uma carta, aos vinte a barriga a mandou comer o professor acadêmico, aos trinta pariu dois idosos poetas, um macho e um fêmea e, como não escreviam mais, os engoliu.
Aos oitenta era puro coletivo criador dentro de si, uma grande favela que compartilhava os recursos escassos através de poesia. E foi num dia, ao querer reencontrar toda essa gente favelada, pessoas com hálito de sopa e não de gente lhe disseram contundentes: Você engoliu toda gente bonita do mundo!
Abriram-lhe a goela e lá meteram dedos e mãos. Foi preciso alguns pares de anos para o estômago revirar aquilo que já tinha sido gente e por se pensarem de cera ficaram anos inerte, sem uma palavra compartilhar.
Mas a gente, por arrogância e comodismo, não passavam de volta e a velha só vomitou dois estômagos, um coração que nunca tinha amado, um projeto de livro inacabado, e uma folha de diário escrito o nome das pessoas que tinha comido.
Continuou engolindo as pessoas lindas que encontrava no mundo e por isso resolveram atirá-la da montanha. Voando, delicada como lagarta que virou borboleta, sentiu-se flutuar.
Desprezando a gravidade, caiu para cima e sorriu para o colorido dos raios de sol e para a beleza das nuvens. Espantou-se, lá em cima também havia flores!
- Devia ter nascido pra pássaro – pensou...