Acordaram juntos naquela manhã. Um, caracol e segredo do outro. Braços e pernas enrolados em sustos e sonhos incompletos.
A mulher, tranquila pediu, então, ao amado que lhe desse um filho em matéria bruta para que ela pudesse ser escultora e, assim, ele o fez. Depois, chamaram o ser amorfo de Nosso Amor.
A criatura foi moldada como uma brincadeira. Tinha um pé menor que o outro e dentes desproporcionais feitos de uma fileira de madrepérolas incrustadas no céu da boca.
Pensaram em dar-lhe asas, mas tiveram medo que os vizinhos dissessem que era adotado. Também temiam que o ser amado caísse por terra e os culpasse por não saberem voar.
Nosso Amor nasceu com gigantescos olhos de fome e mãos que tudo apontavam querendo sempre e mais.
De pequeno, disparava um som estridente igual a sirene de fábrica e sacudia os sinos que lhe adornavam as orelhas. Dessa forma, percebia que não estava só.
À noite, enquanto o menino dormia, os pais o miravam de longe sem querer adivinhar que Nosso Amor poderia crescer e desejar sozinho.
Cresceu tanto que, ao dar os primeiros passos, arrebentou a janela da casa e todos os móveis tiveram que ser postos para fora.
Dezenas de reparos e muitas horas de cansaço deram logo ao casal o mesmo aspecto desbotado da parede da sala.
Com os pais-poeira, aprendeu letras e números e algumas histórias de pura invenção. Descobriu, também, como amarrar o cadarço e onde ficava o cruzeiro do sul.
Só que nada disso lhe bastou. Nosso Amor crescia e exigia explicações que não tinham começo nem fim.
A mãe se lembrou de que foi ela que um dia tanto o quis, mas já não lembrava o porque.
O pai pensou que talvez fosse melhor tê-lo posto à venda enquanto era mínimo e engraçadinho.
Cansados, decidiram abrir a porta da casa para que Nosso Amor saísse, mas deixaram-na aberta na esperança de que um dia voltasse.
Livre, a criatura fez amigos na rua, na escola, no bar e nos prostíbulos. Foi artista de circo e matéria de jornal. Morou no hospício, no albergue e na estrebaria e se emocionava com a sirene da antiga fábrica de tecidos.
Pouco tempo depois, criou pêlos por todo o corpo passando a visitar constantemente o barbeiro. Até que um dia, a caminho da barbearia, Nosso Amor tropeçou quebrando o braço e perdendo uma das mãos.
O barbeiro, que não lhe cortava os cabelos, mas, lhe contava casos de amor e morte, amarrou-lhe no braço esquerdo uma navalha cortante como ferramenta substituta. Nosso Amor gostou tanto e sentiu-se poderoso imaginando tantas novas possibilidades de afeto.
Voltou feliz, retalhando o que via pela frente, até chegar à velha porta que estava sempre aberta.
Olhou com olhos de fome e não viu ninguém. Disparou a sirene estridente e, depois, calou.
No antigo lar, vazio, só encontrou duas cadeiras e, sobre elas, um monte de barro ressecado.
O cheiro da terra lhe lembrou algo indefinível e fez com que ele desejasse, naquele instante, tornar-se escultor.
Sentou-se em frente às cadeiras, umedeceu delicadamente a matéria bruta e esculpiu, sozinho, com sua nova mão de navalha, um jovem casal de amantes dando-lhes, por fim, um deslumbrante par de asas.
O palíndromo do Nosso Amor
ResponderExcluirANIMAL-LÂMINA
É nosso amor romã-osso, né?
ResponderExcluirLâmina ama
ama animal
Ama animal! Ama!
Ama animal-lâmina, ama!
É nosso amor
romã-osso, né?
Sonhos
ResponderExcluirOs corpos, abraçados, vão mudando de posição enquanto dormimos, virando para cá, para lá, sua cabeça em meu peito, minha perna sobre seu ventre, e ao girarem os corpos vai girando a cama e giram o quarto e o mundo. "Não, não", você me explica, achando que está acordada: "Não estamos mais aí. Mudamos para outro país enquanto dormíamos".
(Eduardo Galeano, "Dias e noites de amor e de guerra")
Essa ilusão de que só por criar algo
ResponderExcluirO produto pertence a gente
Dói só de pensar.
Ah, amor, por favor
só não vá sem nos avisar.