A caixa laranja do arco-íris dourado

Selenita realiza, assim como centenas de milhares de mulheres, uma dupla jornada de trabalho. É secretária de um advogado falido no centro da cidade. Dr. Miguel. E, além disso, ao chegar em sua casa, passa roupa, lava copo, estende roupa e pinta o cabelo. Vinte e quatro horas multiplicadas por três ao cubo. É essa a impressão que se tem observando essa dona

Selenita é uma alavanca, daquelas que aprendemos em física, mais precisamente em mecânica. É só fazer a associação. Não olha nem para os próprios pés. Levanta-se às sete da manhã, sempre com o pé direito, pois isso já a direciona para o guarda-roupa, de onde recolhe sua calça preta de veludo e uma camisa branca amarelada, assim como todas as outras que ainda tem. Depois escova os dentes. Toma café. Escova de novo os dentes e faz uma trança no cabelo (dá mais credibilidade, um dia lhe disseram).



Assim, toma trem. Metrô. Trem. Metrô, todos os dias e chega até seu trabalho. Passa oito horas em uma sala de três metros quadrados ao lado de um telefone e um computador Windows 98 – haja paciência. Tchau Doutor. Adeus, boa noite. Até amanhã. Ônibus. Metrô. Metrô. Trem outra vez.

Certa noite chegou em seu apartamento, abriu a porta da sala e, cansada, foi direto para o quarto. Sentou na cama. Parou. Olhou. Há tempos olhava sem ver nada. Nem sequer se tocava. Era uma máquina. Só mais uma, entre um milhão de outras. Porém, nesse dia, se olhou, tocou-se e achou. Se achou. Olhou seu quarto empoeirado pelo tempo. Sua cama, há tempos com extrato quebrado. O retrato na parede que, agora, te olhava sem parar. Ele sempre esteve ali. Só agora, Selenita o notava.

Sua escrivaninha. O telefone fora do gancho. Se isolou nessa sua ilha. Era mais uma máquina, somente. Uma máquina em uma ilha. Mas naquela noite, a verdadeira  Selenita reascendeu. Sua escrivaninha ainda estava ali. Abaixo dela uma caixa, tão empoeirada quanto tudo naquela casa. Abismou-se, pois há tempos não via esta, que, há certo tempo guardou todos os seus segredos, que hoje tão bobos lhe parecem.

Era a caixa laranja do arco-íris dourado. Era assim que Selenita chamava seu cofre de papel, pois  ali estava seus maiores tesouros. Tirou o pó com as mãos. Chacoalhou, tentado lembrar o que ali guardara.

Percebeu naquele momento que sua memória pouco a pouco se perdia. O presente não vivia. Pro futuro não tinha planos. E do passado sequer lembrava. Balançou de novo, nada ouviu. Foi aí que sentiu. E as memórias pouco a pouco lhe foram sendo constituídas.

Com esforço abriu a caixa que já estava velha e por pouco não se abrira. Abriu! Um toque de luz lhe foi inserido no corpo, na alma. Olhava com carinho aqueles pedaços de papel rabiscado, pintado, escrito. Tempos em que ainda escrevia. Em que ainda enxergava e em que ainda sentia.

Sua infância toda veio à tona. Seu mundo empoeirado se constituiu de laranja do arco-íris dourado... E se pôs a ler seus antigos, mas muito atuais versos. E aí se lembrou do seu passado e começou, a partir daí viver seu presente e trilhar seu futuro. Agora sim tinha razão para viver. Tinha uma história, não era só máquina e tinta no cabelo.

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