Época de Verão


“Época de verão
Criança, a vida é fácil
Os peixes pulando fora d'àgua
E o algodão, Senhor,
    O algodão está alto, Senhor, tão alto.”
(Summertime, Janis Joplin)

Dirige-se para o quintal, não pregara o olho a noite toda. pega a corda no quarto de trabalho do marido. arrasta-se mais que anda, segue para a sala, pé direito mais alto da morada. não é dona de seus passos. puxa uma cadeira, sobe  nela para encaixar a corda no caibro alto, joga a corda passando-a de um lado a outro da madeira. numa das pontas dá três nós, assegura-se de que estejam firmes o suficiente para suportar o peso do corpo. desce da cadeira com a outra extremidade da corda nas mãos, nesta faz o laço... cuidadosamente, mecanicamente, ajusta-o para o pescoço fino. dependura-se na corda, puxa e repuxa, muitas vezes, tantas que a mesma escorrega até a parede entre a sala e o quarto das crianças e ali se aloja, em segurança. novos puxões para testar a firmeza do objeto, um pouco da cal cai sobre sua cabeça, tons esbranquiçados nos cabelos a branquear... a corda deixa marcas na parede velha. será que a casa suportará o peso? sente-se tão densa! sente-se tão nada! novamente pega a cadeira - o sol anunciava o espetáculo no horizonte, precisa guardar bem tudo aquilo – esconde a corda sobre a madeira. exposta somente suas marcas na parede, ninguém há de botar reparo naquilo. esmeralda levanta antes do sol todos os dias, deixa na cama filhos e filhas dormindo, quando acordarem não terão o que comer. dor. arranjar o que colocar à mesa durante o dia. tem de garantir ao menos uma refeição por dia ou uma refeição a cada dois dias. impunha-se esta missão. deus! não fossem suas crias! pega a enxada, que o falecido deixara sempre organizada no canto de trabalho da casa e parte. olhos não tinham onde buscar lágrimas, tamanha a fundara da dor. pés, protegidos por chinelas gastas, tocam a terra seca do lugar. na vastidão terra, pedras e um pequeno riacho que vinga no outono, traz poucos tons verdes na localidade amarronzada. passa por ali.. tanta beleza no ar.. mas não vê a beleza exterior. o vilarejo é ermo, cinematográfico, muita gente da cidade grande vai até lá para gravar filmes que falam da realidade do nordestino. o cenário nasceu pronto. chega mais um grupo na cidade, esmeralda ignora, trabalha, cava em busca de um milagre. o luto pesa mais a fina tez. não vê, é vista. a magia do cinema à sua frente. a possibilidade de ganhar dinheiro como figurante. Sorteio. será a viúva. ironia do destino, a arte imitando a vida. tem certeza que o papel é dela, não sofrerá para desempenhá-lo. grava as cenas. para o cinema. vê-se na tela grande. é atriz. desperta nela uma felicidade, um sentido de vitória. forças que não sabia possuir. sente que é capaz de fazer qualquer coisa. encara a vida. encara a morte batendo a porta da memória... constantemente. diz não, um “não” rancoroso, cheio de certezas e de renascimento. a vida corre, como o riacho com cores. precisa de arte para viver. cria e recria sua realidade. constrói um castelo com sua criatividade: deposita na calçada estrelas, nas paredes fé, na mesa o alimento, na vida de cada filho a música e a poesia. surgem novos sentidos da vida. a casa é arte, atenta a quem passa. a alma está em paz. na parede da sala, entre a sala e o quarto das crianças.. marcas da corda. Dali, como reféns, somente as marcas.

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