Voltava pra casa depois de duas semanas fora, tinha precisado de umas férias da própria vida, mas já sentia saudades de casa. Não há lugar como nosso lar, descia a rua lembrando de Dorothy e quando viu já estava em frente ao seu prédio.
Abriu a porta e sentiu aquele cheiro conhecido, de cera misturado com desinfetante. Engraçado como lembramos dos cheiros, ainda lembrava do cheiro da escola na primeira série e sempre que sentia aquele cheiro, que nem sabia identificar, era transportada pra aquela época.
Entrou no elevador antigo e mais uma vez teve medo que ele parasse de repente entre os andares, apesar de nunca ter parado com ela era insuportavelmente lento. Décimo terceiro andar era o dela, sã e salva. O corredor era comprido e cheio de portas, numa delas estava sua casa. Não há lugar como nosso lar. Na sua porta, o tapete colorido e brega parecia gritar algo sobre a dona da casa. Chave na fechadura e a pressa de tirar os sapatos e fazer um xixi, porque não conseguia mijar calçada.
Abriu a porta e... nada. Nada, como assim nada? Tudo vazio, a cama, a TV, fogão e até a geladeira tinham sumido. O apartamento estava vazio, como ninguém viu levarem os móveis? Aquilo era um absurdo, saiu rumo ao apartamento do zelador.
Abriu a porta e... o corredor tinha sumido, todas as 20 portas do corredor tinham sumido e no lugar havia nada, um nada que não conseguia conceber. Agarrou a fechadura com medo de cair no nada e voltou pro apartamento que continuava ali.
Pensava nas possibilidades de aquilo ter acontecido, era impossível, contrariava todas as leis da física, química, matemática e toda essa merda que serve pra dar segurança pra quem segue leis imutáveis. Onde estavam as leis agora? Foi abrir a janela e o que viu era estranho, nada estava ali.
Ela estava louca! Claro, era muito mais provável que ela tivesse pirado do que o mundo desaparecer, ela estava louca e não conseguia perceber, por isso sentia-se normal. Afinal todo louco deve se achar normal, não conhecia nenhum louco de verdade, mas achava que era assim. Ou talvez tenha sido louca a vida inteira e a realidade era aquela, porque nunca se sentira tão lúcida. Ou o mundo tinha desaparecido mesmo. Àquela altura do campeonato não conseguia saber qual hipótese era mais sem sentido.
Por que o apartamento continuava ali, com seus cômodos vazios e portas que davam pra lugar nenhum? Não era lógico. Aliás a lógica nada mais era do que uma piada, agora. Não tinha relógio e não sabia mais há quanto tempo tinha chegado, e pra que queria saber? Mania de querer ser organizada quando não era, nem sequer tinha relógio.
Sentou no chão, mas percebeu que não estava cansada, aliás estava muito bem disposta apesar de tudo. A fome também tinha passado, um alívio já que nada havia pra comer. Nem pra beber, nem pra distrair, nem pra falar. A bolsa ainda estava no corredor da entrada, abriu e viu que estava tudo ali, o notebook, necessaire, carteira, ob, crachá, celular, bala e papéis soltos que nem sabia de onde eram. De repente sentiu que aquilo tudo não lhe pertencia mais, foi até a janela e jogou tudo pelo ar/nada e foi lindo ver tudo que ela era voar em direção ao nada.
Olhava pela janela e se sentia livre, tão livre como nunca tinha sentido, até então não sabia o que era liberdade. Aliás, aquilo que sentia não tinha nome, por isso chamava de liberdade, apegada à necessidade de nomear as coisas. Que bobagem inventar um nome praquilo que estava sentindo se era só ela que ia saber o que era, e ela não precisava de nome pra entender, entendia com a alma. Que aliás também é um nome bobo pra uma coisa que não sabemos o que é. Entendia tudo agora.
Tentou pensar nas outras pessoas que conhecia, será que estavam passando pelo mesmo que ela? Tentou pensar mas não conseguia lembrar de ninguém, nenhum rosto, nenhum detalhe pequeno que fosse, um cheiro... Nada. E a sensação que no princípio tinha chamado de liberdade cresceu um pouco mais, ela se sentia plena, ela se sentia...
Não importava o que sentia, estava maravilhada com a sensação de nada que a invadia, que agora parecia mais um tudo. Parecia que fazia parte do nada/tudo que estava lá fora.
O apartamento, suas portas e janelas que davam pro nada, tubulações, exaustores e buracos que davam pro nada e ela ali dentro. O lindo nada lá fora, o vazio e maravilhoso nada. O mesmo nada que estava dentro dela e que não conseguia ainda entender. A sensação que chamara de liberdade aumentou ainda um pouco mais e faltava pouco pra preenchê-la, sentia que logo ia explodir aquele nada.
Então abriu a janela e esperou o nada/tudo explodir dentro dela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Neste jogo autoral não são permitidos comentários aos textos. Este formulário de comentários deve ser utilizado exclusivamente para postar textos autorais ou de autoria de terceiros, inspirados diretamente na (ou lembrados a partir da) postagem a ser comentada. E mesmo os que não estejam cadastrados como jogadores-autores podem postar textos nos comentários. Contamos com a colaboração de todos para o bom andamento do jogo.