Anamorfose

Havia ela escrito esse texto; um texto tão particular que cada um que lia tinha impressão de tratar-se de história totalmente distinta daquela que lhe havia contado o amigo, tendo lido o texto alguns dias antes. Mas não era no tempo que a diferença se estabelecia e senão no espaço. Duas pessoas que lessem o texto ao mesmo tempo, de pontos diversos no espaço, teriam razão de uma outra novela; ou de um poema; quem sabe, ainda, de uma nota de rodapé; poderia ser que lessem as duas uma mesma coluna jornalística e que, no entanto, cada notícia relatasse o mesmo acontecido numa cidade inteiramente outra. Seria, então, por haverem lido aquelas palavras que chegariam a conclusão de sua própria existência no mundo, uma vez que lendo distintas imagens diante de um mesmo pedaço de papel preso a uma parede, seriam, assim, depoentes da divergência essencial em que se estabelecia aquela experiência. Sentiriam como se estivessem também sendo lidos quando julgassem, por sua posição no espaço, colocarem-se as vistas de um observador atencioso, que enxergava, para cada visada e em cada lugar, uma história particular.

Eu, que olhei pela primeira vez o texto de frente, reparei que ali não constava título e que a pequena história versava sobre o inexistente; sobre os números, as cores, a névoa, o amor, a chuva ou Deus, essas entidades que nos chegam aos olhos e ouvidos, mas de cuja existência é possível duvidar uma vez quando não nos toquem jamais a pele. Mas um outro, que houve olhado o texto um pouco mais a direita, jurou-me tratar-se de um manual objetivamente construído em respeito ao funcionamento de certa máquina de utilização bastante prática. A estranheza que me açoitou num primeiro instante, quando tentei recompor uma experiência minha a partir da experiência alheia, foi logo desfeita quando um terceiro nos apresentou a imagem que houve lido diante daquele texto, qual seja a de uma antiga fábula chinesa sobre um homem que tendo sonhado ser uma mariposa, ao despertar, já não podia mais distinguir sonho e vigília, permanecendo assim em dúvida sobre a razão de haver mesmo sido aquilo um sonho ou se, ao contrário, ele era em verdade uma mariposa sonhando ser um homem. Entendi, nesse momento, que a natureza daquele era dinâmica; que a visão parcial não era suficiente para encerrar a imaginação daquele criador num esquema de estrutura imóvel e personagens prováveis; e compreendi que os pés, o tronco, o pescoço e o movimento eram, ali, tão determinantes ao seu leitor quanto os olhos, pois nenhum visível assim se faria sem que antes uma posição se estabelecesse e todo ele variaria conforme a posição mesma também variasse. Soube eu, também, mais tarde, de uma senhora que saíra dali, do ponto em que sua leitura se teve, com a certeza de que acabara de ler uma versão francesa do celebrado Ulisses de James Joyce; de uma criança curiosa que enfrentara naquelas linhas uma pequena narrativa em que se descrevia a trágica morte de seus pais; de dois amigos de infância que, tendo lido o texto ao mesmo tempo, um ao lado do outro, terminaram em uma discussão desmedida sobre a experiência e, depois dali, jamais tornaram a se falar; e, ainda, de um senhor bastante sereno que, ao ser questionado sobre o texto após sua leitura, dissera apenas que se tratava de um texto bonito, deixando aos curiosos como eu a vaga medida do que poderia ou não haver ele lido repousada apenas sobre uma especulação ociosa.

Eu, que por fanatismo retomei a leitura algumas dezenas de vezes depois daquela primeira, nunca mais encontrei as mesmas palavras, as mesmas frases e, às vezes, tampouco a mesma mancha que se marcava sobre o papel conforme a disposição das linhas e margens. Curioso é que todas essas imagens, essas narrativas e metamorfoses estivessem previstas já na cabeça da menina, que utilizara matéria prima tão simples e tão primitiva; onde já não pudesse alcançar com a imaginação, a própria imaginação a faria retroceder e recuperar a visada do ponto onde a luz e o foco ainda existiam. Pois era a menina, senhora daquelas sentenças, cujo nome se declarava, ora no corpo do texto, ora como apêndice num canto do quadro, a única imagem contínua, um traço irrevogável da personalidade que cada uma daquelas histórias compreendia, mesmo quando um outro ali relia também Dom Quixote, Decamerão, Gargantua e Pantagruel, As Mil e uma Noites ou qualquer outra história já registrada nos autos da literatura universal.

Certa feita, encontrei um homem que declarara haver lido um lindo e singelo texto sobre a beleza decadente de uma mulher de trinta e poucos anos. Reconheci em seu testemunho uma belíssima história que eu mesmo acompanhara alguns dias antes nos meandros daquelas palavras. Uma coincidência marcante não apenas porque pudéssemos descrever um ao outro a mesma narrativa, sobre uma mesma personagem de nome Carmem, mas porque ambos tocamo-nos profundamente com o texto e pudemos nos identificar com a mesma figura, ali traduzida por uma atriz cuja personalidade parecia marcada pela melancolia e saudosismo de uma juventude cada vez mais distante. E enquanto o homem me descrevia os detalhes da história que tínhamos em comum, eu pude perceber que seus olhos se umedeciam e seu semblante assumia aspectos de um sentimento que eu poderia rever como próprio de Carmem e também meu.

Nesse instante, senti como se eu mesmo desaparecesse na superfície de um corpo maior que nos compreendia, a mim, àquele homem, a Carmem, à menina escritora, enfim, a todo aquele que confirmasse com os olhos o que uma história já antes escrita determinava para os seus corações; como se fosse possível existir sem existir individualmente; como se o mundo que me pertencia e pertencia ao meu olhar fosse o mesmo mundo pertencente a eles e o pertencimento não fosse mais que uma maneira de ser que eu, então, declinava em favor de uma experiência em que éramos um corpo em comum ou o mesmo. Foi a partir dessa experiência singular que retomei a imagem da Gioconda de Leonardo Da Vinci, que dispunha seu olhar direta e igualmente a qualquer um que se apresentasse a sua frente ou mais ao lado ou ao outro. Pensei também nos Embaixadores de Holbein em cuja mancha depositada sobre a tela num canto inferior do quadro se veria uma caveira, mas apenas se o observador se colocasse num ponto preciso em diagonal em relação à superfície do quadro, tendo sempre em mente que a morte, mesmo quando não se lançasse como tema para um observador daquela pintura, lhe estaria sempre à espera. Pensei nas experiências que levaram Heisenberg a concluir que não pode haver certeza sobre a posição de um elétron já que a própria aferição dessa posição implicaria no resultado obtido. Pensei no Aleph descrito por Borges, um ponto pequeníssimo e materialmente localizado no espaço diante do qual seria possível observar todo o universo.  Pensei, ainda, no Talmud, esse livro construído ao longo dos séculos pelas interpretações e usos que se vieram fazer sobre a religião e a doutrina judaica, do mesmo modo como pensei na exegese cristã constituída ao longo dos últimos dois milênios e sedimentada por nomes como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, sempre como um reposicionamento no tempo e no espaço, já quando o tempo e o espaço daqueles antigos livros parecessem, na origem, não mais caber. Pensei no discurso de Arafat pronunciado na ONU em 1974, em que a figura de um ramo de oliveira caindo se fazia como metáfora de uma guerra que se seguiria pelos anos seqüentes, não, no entanto, que eu visse ali mágica, advinhação ou vidência alguma, senão enxergando naquela mão o empenho e a decisão de uma personalidade que aderiria aos fatos da história mesmo diante das tempestades e turbulências que se anunciavam. Pensei nas profecias de Nostradamus, no Apocalipse e em todas as imagens possíveis e imagináveis que não se realizaram claramente ou não foram testemunhadas por homens. Pensei, com sorriso empunhado, nos dinossauros: Essas figuras descritas em nossa mitologia científica, mas sobre as quais é ainda possível duvidar das suas cores, suas vozes, dos seus hábitos e, sem dúvida, dos seus pensamentos. Pensei na visão que se tem da Terra desde o espaço e na visão que se pode ter do espaço mesmo de olhos cerrados.

Relembrei, então, a primeira vez em que li aquele texto. A imagem de um texto sem título, assim, fez-me entender que independentemente da forma ou da narrativa que me assaltasse diante daquela leitura imprevista, o título não seria jamais necessário e ainda que houvesse, seria ele apenas uma marca no correr das linhas; um palimpsesto precário. Compreendi também que a chuva ou a névoa, o amor ou a divindade que fosse, não seriam o tema de nenhuma história que não evocasse o absoluto. E subitamente, revendo na memória aquelas quatro linhas, concluí com a estreiteza de quem se posiciona sob um ponto de vista:

- O absoluto é tão pequeno.  

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