Ontem, na solidão dada pelo descaso assistia TV, novela. Uma coceira na omoplata direita. Coçou. A vilã vence a mocinha, assim como em todos os capítulos, com exceção do último. Uma coceira na omoplata esquerda. Coçou. Beijo apaixonado da mocinha enganada pelo vilão. De tudo já sabia, mas gostava de emendar a das seis com a das sete, durante o jornal banhava-se. Depois a das oito. Como coçam suas costas.
Acabou o comercial, deita-se no sofá. Algo por debaixo. Levanta-se. Nada. Como é engraçada a empregada. Engraçada e preta. Algo incomoda por debaixo. Pequenas pontas. Estranha. Coça. Sangue?
Não tinha a quem correr. Suas costas sangravam. Algo estranho saía dela. Esqueceu até da novela.
Levantou-se, com dificuldades olhou no espelho. Brotavam asas. Asas? Sim, e cresciam rapidamente como bolo no forno.
Logo imaginou o que os outros iriam pensar. Corou.
Decidiu usá-las. Saltou. E voou.
Viu ruas iluminadas e faróis malucos de carros. Viu restos verdes de mata atlântica. Alcançou o nascer do sol. Viu pessoas que de lá de cima mais pareciam formigas, trabalhadoras. Olhou para o lado e voou com pássaros. Planou com urubus, mas seu estômago embrulhou com o cheiro da carniça. Viu o cerrado, a caatinga e a pradaria. Viu a fome e a miséria, viu a opulência e a ostentação. E também viu, lá do alto, a solidão. E se lembrou da novela.
Hoje, acordou indisposta. Abriu as cortinas do seu âmago e resolveu cantar. Soavam as vozes de todas as bocas e se lembrou que nenhuma daquelas era sua. Resolveu ouví-las. Como trincas em vidro pensou que talvez seus pensamentos também não fossem seus. Tentou parar. Já não podia. Ligou a TV e engoliu-a.
TEMPESTADE NO DESERTO
ResponderExcluirDo ovo que choca,
em frente à imagem e movimento,
nasceram dragões,
Durante o sol da Babilônia.