A boneca

Ela não gostava de ursinhos de pelúcia nem da cor rosa e não tinha bonecas. Gostava de rolar na terra e vivia sujinha a correr pelos arredores da casa.

Quer dizer, havia uma, somente uma boneca.

E foi assim:

Quando sua avó paterna morreu num enfarto fulminante acharam guardados no seu guarda-roupas os brinquedos que já havia começado a comprar para as crianças da família. Ainda era agosto mas talvez intuindo que lhe faltava pouco para partir adiantou as compras de Natal. Deu tempo apenas de presentear dois de seus seis netos: lá estavam duas bonecas. E uma delas era exatamente para "X". Vou chamá-la assim. 

Durante alguns meses X apenas olhava pra aquela boneca limpa, rosa, posta em sua cama como enfeite. Ninguém mexia nela, a menina de seis anos não deixava. Apenas sua mãe podia pegá-la para o ritual cotidiano de arrumar a cama da filha e colocá-la de volta ali, apoiada no travesseiro. X não tocava na boneca, apenas a olhava, um pouco de longe porque de alguma forma sentia medo. É que no dia do enterro  ela não entendeu porque jogavam terra em cima de sua avó. Como podiam fazer aquilo?, pensou. Então aos berros pediu pra que parassem, chorou, gritou e depois dos afagos maternos e paternos, acalmou. A garotinha não sabia exatamente do que se tratava a morte... Bom, isso talvez até hoje não saiba!

Teve pesadelos com sua avó e depois lindos sonhos, como um em que ela dizia para X que a esperava num lugar cheio de árvores, com muito algodão doce pra comer e balões de gás pra soltar pelo céu e que, num futuro ainda distante iriam se encontrar para passearem juntas atrás daqueles portões de grades barrocas. Talvez por essa razão não queria usar aquele objeto quase sacro pra fins tão, tão... "bobos". Não era só porque não tinha intimidades com bonecas mas porque aquela ali, especificamente, lembrava algo que X não compreendia muito bem: Por qual motivo alguém que te faz sorrir precisa partir?Assim... tão... 

Numa dessas manhãs em que a menina estava brincando no quintal, foi surpreendida pelos gritos da filha da vizinha.  Meu pai caiu! Meu pai caiu na cozinha!, gritava. X correu ao encontro de Y. Vou chamá-la assim. Y puxou-a pela mão e mostrou a cena: estava ali, caído de barriga pra cima no chão da cozinha. Ele está daquela cor da minha vó!, pensou X. E em meio a muitos gritos e muito choro,  X reconhecendo aquela sensação, correu de volta pra sua casa, pro seu quarto de mãos dadas com Y.

Fechou a porta. 

Ainda podiam ouvir o falatório, a sirene... Y não parava de chorar um choro pequenininho como ela.  E foi aí que as duas juntas olharam para a boneca rosa recostada. Sem saber muito o porquê, num impulso maior que seu medo, X pegou a boneca. Sentiu que precisava "passar o bastão". 

Pode cuidar dela e quando seu pai falar com você no sonho você me devolve, tá bom?, disse X.

Mais algum tempo se passou. X já sentia-se mais madura do alto de seus sete anos. Estava no segundo ano da escolinha, às vezes cuidava de seus irmãos mais novos (ou achava que o fazia!), começa a sentir as primeiras pontadas no coração por um garoto mais velho (terceira série!) e ouvia todos os dias músicas no walkman de sua mãe, quando naquela tarde, Y voltou. Estava lá, parada no portão com a boneca nas mãos. 

Obrigada!, disse Y. E só. 

Devolveu a boneca, disse obrigada e foi embora. Quer dizer, também sorriu.

X pegou aquele "amuleto rosa" em seus braços e calmamente levou-o pra sua cama.   

Você deve estar cansada!, disse.

Deu um beijo em sua testa e cobriu a boneca com seus lençóis.

Olhou nos seus olhos de vidro durante um longo tempo...

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