Navegando nas marcas fundas do rosto dela, Antônio dizia: bom dia, meu amor, me dê um beijo que me vou agora. As lágrimas preenchiam os sulcos profundos da pele, descendo e desviando-se pelos caminhos, criando rios e lagos onde Antônio navegava, sorria dizendo: bom dia, meu amor.
Mas quando ela se afundava no travesseiro, mãos tapando os olhos para não ver a ausência, ela não ouvia seu bom dia. Só podia ouvi-lo quando chorava diante do espelho - podia então escutar seu riso de fonte entre os peixes, vê-lo a brincar nas marcas do tempo que estavam ali na sua pele, ele chamando e dizendo adeus, chamando e dizendo adeus. Estou acabando, também – ela pensava, consolando-se ao ver o vestígio do tempo sobre o seu corpo. Mas no fundo sabia que podia durar muitos anos, ainda.
Como durar sem Antônio? Nada dura, nada cresce, nem nasce nem morre sem Antônio.
As violetas que sempre nasceram e renasceram por décadas partiram como borboletas, deixando apenas a terra seca dos vasos. Nas madrugadas as camisas saíam do armário, desoladas, a procurar o seu corpo, querendo cobri-lo, aquecê-lo, e voltavam pelas manhãs, cheirando a tempo passado. As frutas amargaram, os bolos não cresceram mais, o creme desandava no fogo. Os filhotes de Flor, a cachorrinha, não vingaram., e ela fugiu dali pra algum lugar onde Antônio pudesse lhe afagar. No auge do verão, caíram as folhas de todas as árvores que rodeavam a casinha pequena onde outrora se amaram os dois, e foram-se num redemoinho procurar Antônio.
Antônio gostava de cantar, sabia, seu? Ela só sabia falar de Antônio. Antônio gostava de cantar. Tudo no mundo lhe foi motivo de cantiga. O seu canto não era como o canto dos homens. O canto de Antônio era sempre um canto de amor, do amor verdadeiro, que ele trazia do mar. Por isso naquela pequena casa as paredes sabiam as sete notas, as torneiras corriam variando em acordes maiores e o velho violão desafinado podia tocar sozinho e de cor os cantos mais lindos das sereias.
O vento soprava: Tonho, Tonho, Tonho. A chuva cantava: Toninho, Toninho, Toninho. A lua alumiava: meu amor, meu amor, meu amor. E o sol nascia para perguntar por que, Antônio, por que você se foi tão já?
Eles eram coisa pouca, apenas Maria e Antônio. Davam-se comida, comida pouca, na boca um do outro, achando graça, um carinho. E de repente ele ouvia um ruído em sua barriga e dizia: Maria, já disse para você não comer farinha, que lhe faz mal. Ela olhava o rosto dele e trazia um copo d’água, adivinhando-lhe a sede. Ele a assustava e achava graça de sua braveza: saia daqui, Antônio, pare de roer o meu juízo! Mas ela adorava aquele juízo roído, desde a primeira vez. À noite enroscavam-se como animais que eram, e o sol chegava sempre ao mesmo tempo para os dois – eles abriam os olhos juntos, e a primeira coisa que viam era o par de olhos do outro. E sorriam. Então ele levantava, trocava a muda de roupa e lhe dizia: bom dia, meu amor, me dê um beijo que me vou agora. E voltava com peixes grandes e farinha d’água, e eles se fartavam contentes.
Mas agora nem mais Maria nem Antônio eram, que se completando não podiam ser dois e nem um. Só podiam haver como Antônio e Maria.
Antônio um dia foi navegando para nunca mais. Maria, como mulher, acostumada a esperar, daquele dia em diante não pôde mais. Olhou de perto no espelho os seus olhos que tanto marejavam sem parar, e ali acenando o seu amor: me dê um beijo, Maria, que me vou já... Tomou coragem, levantou as saias e foi-se mergulhando na maré bravia daquela tristeza, nas ondas altas da sua saudade, o corpo salgado de lágrimas. Onde, cadê Antônio? Debateu-se furiosa de não vê-lo mais, foi largando-se para o fundo deixando-se pesar, quando de súbito ouviu baixinho sua razão, seu peito ali fora do corpo – ouviu um cantar de pescador. Era ele, entoava o canto do primeiro dia! As lágrimas mudaram de cor, o mar serenou: bom dia, amor – ela disse. E velejou com ele, cantando cantigas sem fim, o nariz apertado nele sentindo o seu cheiro, as mãos cravadas nos seus ombros largos, navegando de uma vez para sempre, até sumirem no horizonte dos olhos dela, até sumirem os dois que eram um, no horizonte luminoso dos olhos dela.
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