Carne e osso

Se despedia do sorriso mudo e interno que criava bem dentro. Se despedia da luz, da sensação de morar na Sibéria, dos ruídos estranhos e conhecidos das madrugadas perambulantes sem diretrizes, nem curvas. Era a primeira vez que não precisaria de dentes, de sua retina preta, ou de sua pele seca. Era a primeira vez que escutara tantas pessoas falando dele... também era a primeira vez que morrera... se despediu dos paralepípedos, da roupa suja, que não sabia mais de que cor era. De boca amarga engolia o sol, suor a pingo. Desejou ter cortado as unhas, ter uma sandália, ter ouvido música e ter bebido mais vinho... Já não era hora de desejar, sabia. Mas porque cargas d’água lhe deram um cérebro? Talvez o cérebro não deseje. E quem, o que deseja? O coração? Ele existe? Desistiu de pensar, jamais tinha sido instruído para isso, e isso, cansava... ainda mais ali, perto de seu último suspiro e sendo apalpado por mãos que não eram carinhosas...será que a palavra era mesmo “carinhosa”? Já se esquecera o que é mesmo carinho... Bom... estava morrendo, para que saber agora? Queria voar, chegar de asas ao céu e não de carro (afinal era para lá que iria, após essa vida que levou!), e não gostava desse barulho que o carro fazia anunciando sua desgraça... quer dizer, sua chegada ao céu. Poderia ser tudo em silêncio, em toda sua vida nunca foi anunciado, nunca foi percebido, recebido ou esperado. Não precisava disso, chegaria em silêncio, como sempre foi.

Sentiu que já não pensava. Passaria então desta para... pára! Acordou de bata verde, com uma bandeja de sopa e um copo de água suja do lado. Sofria de uma despedida frustrada, de um esforço exacerbado para pensar tanto, sofria de desejos que jamais ousara ter, para não precisar arrancá-los. Sofria de um descompasso irreverente e medonho, que não queria ter. Sua aventura de morrer, não era mais aventura, a vida brincou de menino, o fez ter coragem de ir embora e depois o largou. Era como recomeçar de um final onde não tinha partido, era como retornar ao pó, antes de ter sido carne, e osso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Neste jogo autoral não são permitidos comentários aos textos. Este formulário de comentários deve ser utilizado exclusivamente para postar textos autorais ou de autoria de terceiros, inspirados diretamente na (ou lembrados a partir da) postagem a ser comentada. E mesmo os que não estejam cadastrados como jogadores-autores podem postar textos nos comentários. Contamos com a colaboração de todos para o bom andamento do jogo.