Quando menina ela tinha uma aparência assim de quem sempre acabara de errar. Já ele, ah, ele era mesmo um pai: tinha uma aparência de visão passada, se olhava para ele e parecia que se estava vislumbrando a melhor lembrança. E qualquer coisa que ela-menina dissesse ou que fizesse, fazia-o olhar para ela sério e em silêncio - como quem dá ao que foi dito uma importância incrível - e logo depois sorrir como quem compreende. Quando ela passava por ele no ritmo instável de sua idade indecisa, ele afagava a sua cabeça e dava um puxãozinho nas suas tranças, leve como uma brisa. Olhar para ele era como ter certeza de que existe no mundo uma verdade.
Mas aquele não era seu pai. O corpo morto velado sob lágrimas e sussurros era de um pobre homem que não fazia entrever lembranças nem tinha aquela serenidade de ser como tinha ele e como têm os passarinhos. Mas era curioso um corpo morto.
Dulce então já tinha idade para compreender e para chorar, entretanto nenhuma lágrima caiu por aquele estranho homem. Passaram-se os dias, a casa estava submersa em choros e lástimas, e a menina distraía-se e comia, às vezes cantava melodias inventadas de improviso. Os parentes olhavam-na com um ódio inconformado, julgavam-na uma presença demoníaca dada a sua incapacidade de sensibilizar-se. As irmãs se levantavam quando ela se sentava para jantar, e a mãe desatava a chorar tão logo olhava nos seus olhos. Mediam a dor por lágrimas, como a distância por metros.
Para a menina Dulce o mundo ficara triste e doído, mas continuava obrigando-lhe a viver e a fazer as coisas. Pela janela ela o via acontecer como sempre, alimentado de dores, risos e morte: os casais se juntavam e se separavam, bebês nasciam, homens corriam e suavam, senhoras estendiam suas roupas. E se seu pai era aquele corpo roxo que vira dias antes, então não o queria mais. Tudo parecia certo, ainda que dilacerante – para ela fora sempre assim. Sua convivência íntima com a dor, que acumulava-se dentro do passar dos dias, permitia-lhe aproveitá-la. Coexistiam, ela e o sofrimento, num acordo mútuo e inevitável, como a mão esquerda e a mão direita. A dor não teve nunca para ela aquele caráter excepcional que possuía para os outros e que tanto lhes parecia obrigatório. Ao contrário, a tristeza foi sempre para ela uma condição e uma companhia: sentava ao seu lado e adormecia com a cabeça recostada em seu ombro, encostava o rosto no seu e piscava seus cílios úmidos. A tristeza era por demais amiga, parte muito preciosa de si. Confortável nesse sereno cotidiano de humilde aceitação, ela assistia a um excêntrico teatro de caretas trágicas que para ela não faziam qualquer sentido.
Mas foi sem esperar que aconteceu. Passou os olhos por eles de repente, sem atentar muito. Mas quando realmente os viu, dissolveu-se toda em lágrimas grossas, tremeu em soluços como nunca antes. A mãe casualmente flagrou-lhe, chamou a todos para que presenciassem o espantoso espetáculo da pobre menina que chorava escondida, como a julgamos mal, como pudemos? Todos se aproximaram para consolá-la, e embora não entendesse ela aceitou os afagos com simplicidade, talvez realmente precisasse, talvez precisasse havia anos. Foram embora os parentes, orgulhosos da garotinha inconsolável, aliviados por seu sofrimento, e seu pranto ainda continuou por mais de hora. Era por causa dos sapatos.
Os sapatos dele repousavam ao lado da poltrona em que ele tanto gostava de sentar; estavam assim meio rotos, desgastados na parte da frente porque ele sempre tropeçava. Não lhe deu saudade, não era essa a palavra, era a beleza que lhe fazia chorar. Como aqueles sapatos definiram seu pai novamente, apagaram a imagem daquele corpo frio e roxo sobre o qual tanto choraram por engano. A existência simples e despretensiosa daquele homem estava bem ali nos seus sapatos vazios, e tantos tropeços e caminhadas suas estavam ali arraigados, toda uma vida nas solas gastas daquelas botinas. Quem sabe poderia andar pelos seus caminhos, viver nos passos dele uma vida toda de verdades e encantamentos.
Sentou-se confortável na poltrona, tirou seus pequenos sapatos e calçou as botinas repletas de pai que há tanto tempo lhe comunicavam sua presença sem que ela pudesse compreender. Olhou os sapatos folgados nos seus pés acanhados: quanto espaço faltava entre o que era e o que queria ser! Ensaiou alguns passos, desajeitada foi de um canto a outro do cômodo: sentia-se forte e amável. Encontrou por acaso um grande espelho. Olhou de cima a baixo para si mesma, com uma expressão grave, e então aos poucos abriu um sorriso que se alargou amistoso: um sorriso de quem compreende.
Andou por semanas com os calçados sagrados do pai, tropeçando constantemente e com alegria. Então não se sentia sozinha. Dormia de sapatos, e de manhã perguntava-lhes dos sonhos. Era apontada na rua pelas outras crianças, mas então se aproximava delas afagando-lhes a cabeça ou sorrindo aquele sorriso largo. Sentia-se inteira.
Até que a família achou tudo isso muito doentio e tétrico, escondeu dela o par de botas e calou-se contente por revelar-se o pranto da pobre menina recalcada - que nunca mais chorou.
...Eu não sabia que doía tanto
ResponderExcluirUma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída, não doía assim...
Nelson Gonçalves