Riso Perdido

Mas lhe faltavam tantos dentes na boca, que ele perdeu o sorriso. O sorriso tinha apodrecido dente por dente, junto com a sua vida. O sorriso tinha sido cuspido com muita dor, junto com a sua vida. E os dentes que restavam eram tão feios, tão gastos, tão sujos, que se alguém visse – se alguém nalgum dia que não chegaria, visse – acharia mais belo uma boca vazia.

A boca serve pra falar, comer, beijar, rir – pensava. Ele pensava.

Falar não podia. Aprendeu mal as palavras. As que aprendeu, pouco lhe serviram. As que tentou, não houve quem quisesse escutar. E agora a falta dos dentes fazia tropeçar as letras, o som não se mostrava como tinha de ser e fazia-o se sentir ridículo – preferia calar-se.

Comer não comia. Vez ou outra encontrava uns nacos de resto nas latas de lixo. Outras recebia a sobra dalguma refeição, entregue por alguém de barriga e consciência satisfeitas.  Mas sem os dentes ficava difícil demais. Precisava de muito tempo até fazer desmanchar na boca aqueles pedaços, tinha de ficar ruminante como um animal, e só engolir quando já sentia mais nojo do que fome. Isso não era comer. Comer era o que viu certas vezes na televisão.

Beijar, não beijava. O corpo vez ou outra encontrava jeito e energia para satisfazer-se sozinho, nas madrugadas públicas, sob olhares horrorizados, de viés. Mas beijar, não beijava. Boca banguela não sabe beijar. Vira outra coisa o beijo vazio, é um beijo de boca que não ri, é um beijo de boca que só pode chorar. Vira uma coisa desumana, lastimável. Mas ele se lembrava muito, ele se lembrava. Era de um beijo que por vezes ele tirava forças para se lembrar que não era bicho.

Rir, não ria. Riso sem dente não é riso. Riso sem dentes dói nos olhos, dá chiste, dá nojo, dá pena.

Mas a boca dele servia para quê? Caíra em desuso? Seria mesmo ele um homem, como os outros? Tapou a boca com as mãos. Tapou os olhos com as mãos. E chorou. Dentes ele não tinha muitos, mas lágrimas tinha, ali bem dentro da garganta, grossas, sentidas, mudas. Depois de tanto tempo.

Certa vez viu assim numa página de jornal que lhe cobria: Brasil é campeão de banguelas na América Latina. Achou graça. Fazia parte dessa vitória. O país era cheinho de gente como ele, gente achando graça sem ter graça, achando graça sem ter riso que se pudesse mostrar. Então ele engolia de volta  a graça do mundo, e com ela enganava a boca do estômago.

Quando ele abria a boca, naquele gesto que comumente se faz ao sorrir, o que emanava dali era algo tão bestial, tão patético - aquela falta, ausência tanta que esvaziava os olhos e enchia o coração de vergonha, de medo, de pena.

Pela expressão aterrorizada, enojada ou zombeteira do outro ele se apercebia de que de nada adiantaria o desejo de dar ao mundo um sorriso, porque o que saía dele não correspondia ao sonho doce de uma gargalhada. E nem ele podia nunca nomear. O que saía da sua boca era o jorro de uma verdade que ardia nos olhos dos outros. O que saía da sua boca não era sorriso. O que saía da sua boca era miséria.

Um comentário:

  1. Pé de estrela !

    Quem plantou ?

    Havia ventado tanto, que as emoções foram todas levadas junto com o vento. Emoções, segredos e histórias - aquelas contadas e não contadas. Era tudo tão imprevisto, o caminho tão difícil, quase um sono sem sonhos. Tinha até um castelo, mas que não dava para brincar.
    E o desejo era tanto, tanto, que houve um dia em que aconteceu que tudo se evaporou. E você sabe, né, vapor que sobe para o céu, tem essa história de virar nuvem e também da nuvem virar chuva...
    Mas o certo foi que ali, ao invés de virar vapor, nuvem, chuva, tudo aquilo virou semente ...
    Semente de estrela.
    Que a gente plantou.
    Vagarosamente...
    E sem medo algum.

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