Boi de piranha

À sombra da velha sete cascas, o menino ouvia ao longe um timbre anônimo e uma melodia familiar. Era um lalari-lalará de entardecer que o fazia duvidar da necessidade do verbo. Na amargura disfarçada da primeira infância, contemplava o mundo sem palavras ou orações, quase tocando com os lábios a trama grosseira de um tecido raro, fabricado com gritos que se perderam pelo labirinto da voz.

Encostou-se ao tronco úmido da silenciosa guardiã e fechou os olhos para enxergar a lembrança que atravessava seu corpo sem pedir licença. E a dolorosa imagem, na tela dos olhos de dentro, mostrava em cores e formas o animal dócil que um dia, não sem razão, ele batizou de Feio.

– Dá pra mim que eu cuido – disse, em um ímpeto de coragem inédita, ao perceber que o nascido não teria destino nobre como os outros e, muito menos, cuidados especiais. Parido de véspera, o bezerrinho débil era morre não morre nas primeiras horas e desequilíbrio constante nos primeiros passos.

E assim, por impulso, o garoto conseguiu que a falta de um se apoiasse na incompletude do outro. Sem o viço desejado para a espécie, enxergava no desajeito do animal uma discreta dignidade. Nem deu ouvidos aos que aconselhavam desapego, porque sempre quis se afeiçoar à condição de cuidador.

Foi assim, e só por isso, que Feio sobreviveu junto aos homens e bichos mais resistentes do lugar. Sobreviveu até o pasto secar ou até o dia em que, em busca de alimento, os rebanhos seguiram os vaqueiros na travessia do rio infestado. É que nessas ocasiões, às vezes, um boi magro, com discreta dignidade, pode, finalmente, encontrar sua serventia.

O menino se esforçou para não abrir os olhos quando o som do berrante invadiu seus pensamentos. Queria ver com nitidez o par de olhos, imensos, desviando silenciosamente dos seus. E foi o tempo da imagem se desfazer em fumaça para que a música e alguns mugidos longínquos raptassem, novamente, suas palavras na dissonância daquele fim de tarde.

Um comentário:

  1. Boi de piranha - expressão rural originada a partir da prática de sangrar um boi velho ou doente e jogá-lo às piranhas para que o restante da boiada cruze o rio em segurança.

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