Palhaça inversa

Não me pintei de palhaço.
Me pintei de nuvem, fantasia, drama e tatuagem.
Mas nunca de palhaço.
Me pintei de mocinha, fantasminha, borralheira sem carruagem.
Me pintei de puta, homem, cigana, marginal.
Mas nunca de palhaça.
Me pintaram.
Acharam meu cabelo engraçado e minha vida sem graça
Acharam que os cortes na alma eram cobertos com tinta,
Me pintaram.
Pensaram que minha garganta era um céu esbugalhado,
Pensaram que a minha cabeça era um vaso de flores, viúvas.
E sem cheiro e sem sorte.
E sem sorte, palhaço, palhaça, ou corre, ou morre.
Mas palhaça me pintaram e palhaça eu não gostei de ser
Nem de ver-me, verme...
Tirei os suspensórios para cair a calça,
E a alça, da mala, da casa, da sobra
Que eu não queria.
Desamarrei os cadarços dos sapatos com os paralelepípedos
Arregacei as golas e as mangas do meu suor salgado
E saí correndo nua, peito aberto e duro
Voz berrante aos surdos palhaços reais, ou irreais
Mas dizem que palhaço não é isso não
Não sei quem são, só sei que não sou
Então saí correndo ainda, nua e ouvida
E foram tantos sussurros dos que me pintaram
E tantos risos para disfarçar o medo
E tanta covardia para se fazer calar
E eu inebriada de nudez e grito, e mar
E eu cantarolava Chico a todo instante que pensava em chorar.
E tomava banho de chuva para cada vez a chuva me despintar...
E eu ainda nua corro, grito, canto e choro
Em qualquer rua, morro, digo, canso e transbordo
Em tintas do meu próprio pensar.

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