Aguda gravidade


Tão simples quanto
entrar no buraco de uma agulha:
um gol, uma luva,
um amor, um girassol.

Peso

Arrasto minha liberdade pelas ruas, quase como uma obrigação. Ela está atada ao meu calcanhar esquerdo, porque era a única forma que encontrei de arrastá-la com uma certa facilidade. Minhas mãos ainda estão esfoladas com seu peso e sua aspereza e não mais conseguem segurá-la por muito tempo. A noite eu deito minha cabeça sobre minha liberdade, tento fazê-la de travesseiro. O cansaço cotidiano é tanto que consigo dormir rápido, mas sempre acordo com dores no pescoço e costas, já que é tão desconfortável quanto dura. Arrasto minha liberdade com tanto orgulho, que nem percebo minhas roupas rotas e minha pele ferida enquanto sorrio para as pessoas, dizendo: "vê? Sou livre!!"

Sou livre para morrer de liberdade, porque dela, de qualquer forma, pouco consigo viver. Ainda assim, a seguro com o cuidado de um Shyloch para com sua bolsa de moedas. Tudo o que tenho é essa liberdade, que é minha e só minha. Liberdade que conquistei como se conquista um troféu valioso, uma medalha brilhante, uma mulher difícil.

Simples Enganos

Quando imbuído de insegurança
Externamente travestida de orgulho
Tomado torna-se o pobrezinho
Em terra delira quixotescamente

Mãos, pernas e costas apoiadas
Salvação em escombros a boiar
Burla em si mesmo a legalidade
Fragilidade ancorada noutros mares

Da metafísica e outras medidas

a distancia entre a idéia
e o impulso
será a mesma
que a que há entre o impulso
e o que segue?

Dos motivos, das causas
quem sabe ao certo
do certo a medida
entre os possíveis e os prováveis?

Coisas de gente preconceituosa...


A língua dilacera a alma 
Engana o homem
Dá prazer e vertigem
Apodrece,
Quando consome
A língua mora na boca
Que come
E que será comida 
Os vermes devoram 
O homem e a língua
E evacuam a intolerância infame
de toda uma vida perdida...

Ao extremo

Eles fazem da noite o terror dos que se mostram. E andam juntos, por ruas claras e escuras, procurando por quem se atreve a ser. Em seus rostos, a multiplicidade étnica dos brasileiros. Mas preferem narizes importados e a “pureza” de ideias que julgam próprias.

Vítimas do machismo, trancafiam seus desejos no imundo cárcere de corpos mal amados e dedicam-se a combater a liberdade dos afetos.

Ignoram as cores, as origens e os ritmos de seus ascendentes, enquanto marcham, com tênis made in, sobre o solo de um país inexistente. A terra sul-caucasiana de um delírio fora do mapa.

Não lhes falta coragem, nem ideais, nem energia. Não lhes falta estudo, nem dinheiro e nem advogados. Só lhes falta um espelho ou, quem sabe, alguma tintura capaz de mudar a cor do próprio sangue.

Ideologia

Ontem, na solidão dada pelo descaso assistia TV, novela. Uma coceira na omoplata direita. Coçou. A vilã vence a mocinha, assim como em todos os capítulos, com exceção do último. Uma coceira na omoplata esquerda. Coçou. Beijo apaixonado da mocinha enganada pelo vilão. De tudo já sabia, mas gostava de emendar a das seis com a das sete, durante o jornal banhava-se. Depois a das oito. Como coçam suas costas.

Acabou o comercial, deita-se no sofá. Algo por debaixo. Levanta-se. Nada. Como é engraçada a empregada. Engraçada e preta. Algo incomoda por debaixo. Pequenas pontas. Estranha. Coça. Sangue?

Não tinha a quem correr. Suas costas sangravam. Algo estranho saía dela. Esqueceu até da novela.

Mais bela

Enrolada colcha de lençol,
uma concha, uma ostra,
uma pérola.

Lá fora, a noite, da janela,
a lua alumia um gato.
Fada?

A boneca

Ela não gostava de ursinhos de pelúcia nem da cor rosa e não tinha bonecas. Gostava de rolar na terra e vivia sujinha a correr pelos arredores da casa.

Quer dizer, havia uma, somente uma boneca.

E foi assim:

Quando sua avó paterna morreu num enfarto fulminante acharam guardados no seu guarda-roupas os brinquedos que já havia começado a comprar para as crianças da família. Ainda era agosto mas talvez intuindo que lhe faltava pouco para partir adiantou as compras de Natal. Deu tempo apenas de presentear dois de seus seis netos: lá estavam duas bonecas. E uma delas era exatamente para "X". Vou chamá-la assim. 

Durante alguns meses X apenas olhava pra aquela boneca limpa, rosa, posta em sua cama como enfeite. Ninguém mexia nela, a menina de seis anos não deixava. Apenas sua mãe podia pegá-la para o ritual cotidiano de arrumar a cama da filha e colocá-la de volta ali, apoiada no travesseiro. X não tocava na boneca, apenas a olhava, um pouco de longe porque de alguma forma sentia medo. É que no dia do enterro  ela não entendeu porque jogavam terra em cima de sua avó. Como podiam fazer aquilo?, pensou. Então aos berros pediu pra que parassem, chorou, gritou e depois dos afagos maternos e paternos, acalmou. A garotinha não sabia exatamente do que se tratava a morte... Bom, isso talvez até hoje não saiba!

Medidas da dor

Quando menina ela tinha uma aparência assim de quem sempre acabara de errar. Já ele, ah, ele era mesmo um pai: tinha uma aparência de visão passada, se olhava para ele e parecia que se estava vislumbrando a melhor lembrança. E qualquer coisa que ela-menina dissesse ou que fizesse, fazia-o olhar para ela sério e em silêncio - como quem dá ao que foi dito uma importância incrível - e logo depois sorrir como quem compreende. Quando ela passava por ele no ritmo instável de sua idade indecisa, ele afagava a sua cabeça e dava um puxãozinho nas suas tranças, leve como uma brisa. Olhar para ele era como ter certeza de que existe no mundo uma verdade.

Mas aquele não era seu pai. O corpo morto velado sob lágrimas e sussurros era de um pobre homem que não fazia entrever lembranças nem tinha aquela serenidade de ser como tinha ele e como têm os passarinhos. Mas era curioso um corpo morto.

Déjà vu

O tempo levou-me ao lugar vazio
E trouxe-me memórias,
 Pessoas...
       Coisas...
Tristezas que sempre adio...
                                                        
Cenários que nunca esqueço,
Sensações...
          amores...
                apreços...


Numa viagem tão livre...
Horas essas, desapareço.

Lembrança


Te vejo aqui dentro,
quando faço a próxima jogada,
de vida e movimento.

O casebre

As azaleias eram suas preferidas, tinham algo de melancólico, mas também a delicadeza as rodeava.

- Flores fortes! Dizia. Não se envergonham no frio. Conseguem dar um colorido enquanto as outras dormem.

Essa admiração veio da infância, daquele casebre no meio do nada onde sua avó vivia. Lembrava do cheiro das tardes frias que sentava ao lado da avó para se despedirem do sol, devorando um bom pedaço de queijo curado com gosto de Minas Gerais e um copo de café quentinho, o seu tinha uma gota de leite e o da vó era preto, forte.

Para não esquecer, ou, quarenta e oito azaleias.

Há um ano, todos os domingos, desde que a doença o derrubou definitivamente, a moça ia ao cemitério e repetia o ritual. Depositava sobre o túmulo um vaso de azaleias, a preferida de ambos, e começava a lhe contar as novidades do jornal de domingo. Lia as notícias, uma por uma, sem nenhuma pressa porque sabia que o pai tinha dificuldades de ouvir. Pulava o caderno das novelas e dava atenção especial ao de esportes. Depois, cantava baixinho, e muito afinada, O Sol Nascerá, de Cartola e lembrava-se das tantas vezes que a música lhe despertara em suas manhãs de infância. Por fim, colocava ao lado do vaso de flores o novo desenho que o neto lhe havia feito. Achava melhor explicar, porque as garatujas eram um pouco incompreensíveis. E lá estava, em traços tortos e bolotas de giz de cera, o vovô jogando bola com as crianças, sobre as nuvens, e todos felizes com a camisa do Santos. Então, em silêncio se despedia. Sem nenhum peso porque fazia isso, simplesmente, para não esquecer.

Saudade

Eu to zen, meu bem...
Eu to lero lero
Numa palavra, cem.
Ter quem eu quero...

n'algum espaço

Saudade é bicho sem razão. Escapa em pontadas líquidas, fluxo sem hora marcada. Em silêncio tão profundo que grita até estourar os vidros dos quartos, dos carros, da cidade. Embaça o olhar pela força do ar que tem, e é. Paradoxo sanguíneo, essa tua (ir)real presença ausente, que chega de surpresa e engole o tempo que há.
 

De visita em flor

"E se você se lembrar daquele nosso namoro"

Me admirei quando um beija-flor bateu na porta da casa em que me encontrava
Dizendo que não poderia ficar por muitos minutos, que naquela noite não poderia ser
Pedi que ficasse mais um pouco, pedi também sua mão para sambar
Ele, por sua vez, sambou, beijou a flor e partiu.
Deixou felicidade, poesia e perfume.
Ai que saudade!

25.09.2011
LAURA SALERNO

O Beija-flor

Como se não bastasse
O Beija-flor por horas parado
Buscando  avistar um bosque...
Um qualquer que fosse...
Qualquer planta,
Qualquer vaso...
De tão quieto o pobre,
Já nem parecia pássaro.
Vivendo num mundo torpe
Onde todas as flores são de plástico.

O juízo e a Jactância

Dois são os animais que me intrigam,
O cachorro porque tem dentes,
E o periquito porque não os tem.
Do que se deve concluir que dúbia é também a minha maneira do interesse.

Onde há o belo, faço gozar contemplando-o,
Onde não há, gozo...


...imaginando o seu paradeiro.

Meu amor é passarinho

Meu amor é passarinho
Com gaiola aberta.
Rumo ao sul
Pousa no delta
Bica delicado
Dorme trançado nas minhas asas.
Beija-Flor...
Voa alto em noites de morcego,
vem vazio no peito.
(Meu amor é passarinho)
Quando canta no meu quintal,
É águia viva
Me caça
Me ativa
Aninha arara.
Sanhaço assanhado
Voa pr’outro puleiro
Cisca pavão
Sabiá logo volta pro seu viveiro
Quando pular de novo
Vou junto,
Cantando outras andorinhas
No azul
Que é céu pra vôo livre.

Gitana

Meu corpo é casa, morada de ciganos. Se estende por territórios, avança fronteiras, corre além mar. Não há bússola, pontos cardeais.

Indecente

Todo o corpo escorrega por uma única gota de suor, que percorre a nuca e se espalha pelas costas, onde as mãos repousam após o prazer desmedido e destemperado que um ser pode trazer ao outro.

Pelo corpo. Pela carne. Indecente como só ela pode ser.

A dita decência está perdida em algum poro da pele distendida e dilacerada pelo prazer.

Que fique lá, escondida, onde ninguém possa achar.

Conversa com Masimo

Porque a vida pode ser resumida a merda.
Nas ruas, nos banheiros, nas pessoas e principalmente nos pensamentos.
E quem há de negar a supremacia dos prazeres escatológicos?

Da incapacidade em cagar ou louvado seja o supositório

Por Masimo Trofisi

Caros leitores pudicos, pessoas de estômago sensível, Sandy e Junior, gente com intestino-reloginho, ignorem este texto. Peço licença aos filacanteiros para dedicar estas mal traçadas linhas aquilo que vem de mais de dentro de mim. Sou Masimo Trofisi, ser humano entre seus 40-50, assumidamente medíocre, incapaz de gestos nobres, fracassado em seus relacionamentos e fascinado por aquilo que podem achar banal, grotesco e mesquinho. Ah, sim, ainda moro com mamãe, caso esse detalhe seja importante a vocês. Dada essa apresentação, eu poderia desde já compartilhar aos leitores deste blog detalhes pouco heróicos da minha vida sexual. Embora o assunto tenha lá sua pertinência e também poderia render uma boa carta de apresentação. Afinal, esperma também é algo que vem do meu mais profundo eu, não é mesmo?

Idade da razão


Morrer é uma bosta,
e por isso a vida deve ser significativa,
necessariamente.

Pois não basta cagar,
há de cagar em cima de uma flor,
num nenúfar.

E sentir em todas as coisas da vida,
símbolos, mitos,
poesias.

Augusta

Ela está parada na calçada, os carros passam
.....................vagarosamente........................
A saia muito curta sobre a meia arrastão negra
Apresenta pernas longas e bem delineadas
Nos pés, o salto alto alonga a silhueta esguia na noite fria
Na boca, batom carmim destaca lábios ainda jovens e sensuais
No olhar, pequenas faíscas amortecidas pelas drogas

Um carro pára, pode ser homem ou mulher
Não tem preferências, importa o quanto vai lucrar na noite
Desfila, exibindo-se de frente, depois de costas
Requebra e sorri escandalosamente para os clientes
Mostra parte do desempenho na cama
Movimentando a púbis com as mãos entre as pernas
Passando a língua pelos lábios entreabertos

O lado positivo

Na primeira pedra de sua vida
Tentou retirará-la do caminho
Não a pedra, a vida
Não sabia o que era
E já lidava com a partida
Nem chorar sabia
Um peso insignificante
De uma pedra recém nascida
Depois aprendeu
Que asas aparecem
Deparou-se novamente com outra ida
E sua ausência pesou
Malditas asas
Cada lágrima pesava dez toneladas
Da umidade se fez o musgo
Do musgo se faz extensão
Ou se entrega a erosão
Prefere que brote
Briófitas
Mesmo que na sombra
Dotada de poucos centímetros
De verde
Esperança
Pronta para as partidas da vida

Cai-Kai

Pesei na vida
Como alta pedra parada
de onde salta o suicida.

Route 66

Num dia desses,
Haverei de ser breve
Como um sopro que terá de passar.
E assim, hei de ir tão leve
Quanto a brisa
que não se sente levar.
Num dia desses,
Não espero tardar.
Essa minha permanência
Haverá de se tornar ausência.
Qualquer dia desses.
Pode apostar!

Fênix

São nestas cinzas, nestas mesmas cinzas de fogo eterno extinguido, de chama flatulenta já cagada, labareda imortal que esta morta;

São nestas cinzas crestadas pelo repetir-se, mofadas pelo imitar-se, apodrecidas pelo renovar-se, que a galinha bota sua semente de ouro insipiente, que a codorna renasce com todo seu esplendor de ave torta.

Teu canto infindável, pavão rubro, fera das aves livres da efemeridade esgotável, escalda...

Vamos ave que não voa, se liberte, pule, cisque, cacareje como ave que canta a sinfonia da natureza descontente,

Padeça.

Franga de penas incandescidas, tu só renasces a fim de que morras, assim, eternamente.

estalo

Esvazia, vaza pelos buracos, escorre pele poro pelo, pinga pelas alturas, derrete parte-matéria, parte-lembrança, pedaço-história; despenca pelo ar essa ramificação de alguéns, semente broto caule folha filha filho; gera arremate, desfaz razões, ralenta cores; cria tempo verbal inconsciente, ausente ou ?, permanente ou ?,
irreversível ou ?; atravessa pela fração incalculável do instante e vai para ser adubo do tempo.

Carne e osso

Se despedia do sorriso mudo e interno que criava bem dentro. Se despedia da luz, da sensação de morar na Sibéria, dos ruídos estranhos e conhecidos das madrugadas perambulantes sem diretrizes, nem curvas. Era a primeira vez que não precisaria de dentes, de sua retina preta, ou de sua pele seca. Era a primeira vez que escutara tantas pessoas falando dele... também era a primeira vez que morrera... se despediu dos paralepípedos, da roupa suja, que não sabia mais de que cor era. De boca amarga engolia o sol, suor a pingo. Desejou ter cortado as unhas, ter uma sandália, ter ouvido música e ter bebido mais vinho... Já não era hora de desejar, sabia. Mas porque cargas d’água lhe deram um cérebro? Talvez o cérebro não deseje. E quem, o que deseja? O coração? Ele existe? Desistiu de pensar, jamais tinha sido instruído para isso, e isso, cansava... ainda mais ali, perto de seu último suspiro e sendo apalpado por mãos que não eram carinhosas...será que a palavra era mesmo “carinhosa”? Já se esquecera o que é mesmo carinho... Bom... estava morrendo, para que saber agora? Queria voar, chegar de asas ao céu e não de carro (afinal era para lá que iria, após essa vida que levou!), e não gostava desse barulho que o carro fazia anunciando sua desgraça... quer dizer, sua chegada ao céu. Poderia ser tudo em silêncio, em toda sua vida nunca foi anunciado, nunca foi percebido, recebido ou esperado. Não precisava disso, chegaria em silêncio, como sempre foi.

Riso Perdido

Mas lhe faltavam tantos dentes na boca, que ele perdeu o sorriso. O sorriso tinha apodrecido dente por dente, junto com a sua vida. O sorriso tinha sido cuspido com muita dor, junto com a sua vida. E os dentes que restavam eram tão feios, tão gastos, tão sujos, que se alguém visse – se alguém nalgum dia que não chegaria, visse – acharia mais belo uma boca vazia.

A boca serve pra falar, comer, beijar, rir – pensava. Ele pensava.

Falar não podia. Aprendeu mal as palavras. As que aprendeu, pouco lhe serviram. As que tentou, não houve quem quisesse escutar. E agora a falta dos dentes fazia tropeçar as letras, o som não se mostrava como tinha de ser e fazia-o se sentir ridículo – preferia calar-se.

Comer não comia. Vez ou outra encontrava uns nacos de resto nas latas de lixo. Outras recebia a sobra dalguma refeição, entregue por alguém de barriga e consciência satisfeitas.  Mas sem os dentes ficava difícil demais. Precisava de muito tempo até fazer desmanchar na boca aqueles pedaços, tinha de ficar ruminante como um animal, e só engolir quando já sentia mais nojo do que fome. Isso não era comer. Comer era o que viu certas vezes na televisão.

belo? beleza!

vou falar proceis que o belo me enche, me enche de nhaca
porque contra o belezão nada se pode, ele te suga
de repente cê tá lá falando da pereba do cachorro sarnento abandonado e o belo te pegou
e ninguém mais lembra porque é que eu tava falando do cão moribundo
nem eu lembro, eu volto pra primeira frase e tento
tinha começado bem, mas aí vieram umas expressões tão lindas sobre a pele casca do cão
umas aliterações quase acidentais e pronto
umas metáforas e deu-se
transportou-se
foi-se o leitor e o escritor
embriagaram-se da cachaça do belo
e ficam ali atentos, pra descobrir o que pegou
não era a sarna, nem o abandono
quem sabe se as palavras, ou o enquadramento
tudo se pode enquadrar
até o mendigo fedido fica bonitão em pb
e choro ao ler
choro ao escrever
nos compadecemos da nossa capacidade de nos compadecer com a fossa

ó, vai tomar no cu belezão
senta aqui

Os olhos também falam

Naquele dia conversamos pessoalmente pela primeira vez, só que sem palavras. Foi uma conversa de olhares.

Caminhando apressado, sempre atrasado, nada me prendia. Toda concentração em acelerar cada passo na esperança de fazer o relógio retroceder. Ninguém me deteria. Até que por entre os anônimos transeuntes que caminhavam no contra-fluxo, avistei você. Olhos nos olhos, mesmo que ainda distantes. Me senti fora do tempo. Não que este tivesse parado, mas era como se não me afetasse mais. Cada passo meu agora parecia me transportar a um novo lugar, de onde podia melhor te ver, me vendo. Nem lembrava mais do vital motivo de minha pressa. Nada podia me libertar do seu olhar. Não sei ao certo, mas creio que foram uns quinze passos de olhos nos olhos até nos cruzarmos. Quinze passos que pareciam quinhentos, porque fora do tempo perdemos a noção de espaço. Mas mesmo tudo parecendo se mover em câmera lenta, e mesmo com um enorme desejo curioso de passear meus olhos por todo o seu corpo, não fui capaz de desviar meus olhos dos seus, por nem um instante sequer.

Caçando palavras

E mais uma vez olho pela porta da cozinha que dá para o jardim. Jardim esse quase adormecido pelo tempo... parece nem existir! Eu sempre olho! Sempre estou lá fora! E não só no jardim, também nas ruas, nas vielas escondidas, perto do mar... Tudo isso pra buscar o que aqui dentro necessita de palavra! E por quê denominar o que não se sabe nome? Em verdade só se sabe verbo: sentir! E sentir nem sempre requer a objetividade do é isso ou aquilo. Aliás, geralmente é aquilo, lá longe... Tão longe que escapa quando tentamos pegar. É o desejo que alcança, não as mãos limitadas pelo corpo. O desejo e tudo mais que pulsa! É o sangue que chega primeiro, é a gota de suor que cai antes: antes de subir pela boca (ou descer da alma?) para virar palavra. Talvez a fala seja atropelada pelo encontro com o tempo, que é real, é agora. E o agora é tão objetivo que dói! Daquele tipo de dor que te faz tropeçar. A palavra falada fica no ar misturada com a respiração ofegante de quem diz com os olhos atentos de quem devora: entrelaçada! Mas quando ela escoa pelas mãos... o que antes foi burilado lá dentro, numa busca dolorida e sem fim, não mais pertence a ninguém: torna-se atemporal, livre... O ontem e o amanhã podem eternamente e despudoradamente amar...

Palavra que sai da ponta dos dedos é alívio!

O verso e a pedra

Doce e singelo é o concreto, que se quebra com o destemido repetir do martelo. As palavras que contam é que são ásperas e resistentes. São elas que custam a medida da impaciência. Afinal, poetas e pedreiros partilham cegos a mesma sublime ignorância. Subestimam, com tácita arrogância, a matéria de sua inconsequência. Pois que seria do pedreiro cândido que morre de medo da dureza que a pedra conserva? Seria tal qual poeta lacônico que evita o excesso e, comedindo palavras no espaço já aberto, conta o que é canto e se inventa no tédio. É por isso que o martelo tem peso e vem de cima pra baixo e de novo e de baixo pra cima. Porque quer mostrar que é nos pedaços da coisa que se constrói rima. A violência, no entanto, não está na arma que quebra, mas na palavra que diz da arma e faz da agressão sua regra. E se o poeta, depois do cansaço do verso, quer tregua, a sua arte sem gosto se vela.

é o pedreiro quem na verdade faz poesia,
pois o poeta apenas martela.

Poetizar

Aproveita amiúde a vida que possuis
Adentra a noite escura teu porão em flor
Cinzas e lavas teu leito frio deita
despedaçando alvos e sublimes sonhos

Clarões efervescentes de memórias
malditas e egoístas
Do baú a assolar os encantos
embolorados em flores do campo

Revolução, companheira!

Gotejar de pétala, pranto.
Na carne vitrificada, uma nascente turva
Oriundos abortos de covardes ventres.

Seriam frutos daquela árvore, cítricos
Já que o azedume percorre veias
E saltam ácidos os olhos?

Há revolução, companheira!

Vias Expressas

Estamos todos dirigindo por vias de alta velocidade, algumas vias mais rápidas, outras mais lentas, porém nem todos sabemos para onde estamos indo.

Há um infinito número de out-doors postos aos dois lados das vias e muitos balões-propaganda por sobre as mesmas, todos com o lixo publicitário de costume.

A grande maioria dos motoristas e passageiros acostumou-se, desde a infância, a olhar para os lados, para os out-doors, causando assim uma espécie de sedimentação no início da coluna vertebral que provoca fortes dores quando se posiciona a cabeça para frente.

Mergulho mas não me afogo

Há quem veja a vida como um grande mar
Deve ser porque ambos habitantes precisem de oxigênio.
Tem gente que passa pelo mar e só se limita a molhar seus pés
E da mesma forma, nem pegadas deixa na vida
Outros querem mergulhar tanto nas descobertas da vida
Que se afogam, como se as lombadas fossem ondas que arrastam e colidem.
Os que se iludem vivem isolados em um pequeno aquário
Porque a tv os faz pensar que estão em um oceano.
Há quem entre no mar quando o corpo pede
Quem sinta suas ondas como se fossem abraços
E faça de seu sal tempero da vida.

Deixa eu te ver peixe

À minha rinite alérgica

Na megalópole fria e cinzenta, meus pulmões tentavam – em vão – respirar para além de sua capacidade normal. Lenços kleenex no bolso, garrafa de água devidamente cheia para os momentos em que nuvem de fuligem chegasse ao nariz, a tosse subisse e ganhasse o ar, perdigotos e catarro. Na sala de espera, devidamente climatizada, ar-condicionada, nadavam os peixes com tranquilidade de quem espera a morte e nada conhecem da vida dos carros e poeira e os semáforos e as faixas de segurança e os tropeços e solavancos de ônibus. Para espanto daqueles que liam Caras no sofá, aguardando a chamada da secretária e o terror de horas sentado na cadeira do dentista, enfiei rosto no aquário. Por um momento dei adeus aos meus pulmões, tive brânquias e escamas e desfrutei do mistério daquilo que está abaixo da linha que separa terra e água.

Um Mergulho...


Afogado em provérbio

Velava, assim, seu obtuário
pois era um falso
se um distinto qual Fausto
um poeta no máximo sanitário

Lançou-se um dia ao mar
e fez escrever o oceano
tentou corrigir por engano
tornou, então, a apagar

O espetáculo da pesca

Ainda não se vê o sol quando chegam ao local de trabalho, por volta das quatro horas e meia da manhã. Sozinhos ou em grupos vão compondo o cenário. Alguns conversam, outros permanecem calados e sentados. A espera é pouca, ainda está escuro quando começam a rotina de mais uma jornada no mar.

Três homens levam a jangada de cor laranja da areia da praia até a água do mar, por meio de dois troncos de coqueiro, ocos no meio, que servem de rodas, além de duas estacas de madeira, que servem de alavanca para suspendê-la e trocar a posição dos troncos. Entram no mar; e quando estão lá, o sol nasce clareando a água e o trabalho dos pescadores. O vento sudeste tem a mesma intensidade antes e depois do sol sair, provocando o mesmo som na batida da onda.

História de pescador

Naquelas terras, menos esquecidas do que sua gente, à beira do rio Arapiuns, miséria e beleza travam lutas de vida e morte.

Foi ali que ele, criado na ilusão do infinito das águas, se fez garoto à margem. Pés no chão e olhar atento ao longe. Pai e barco se misturam por necessidades diferentes.

Enquanto as redes penetram o imenso espelho líquido, mais um dia. Se tudo der certo, o governo, a imprensa, os ecologistas, a polícia e os juízes estarão dormindo ou chegarão atrasados ou, simplesmente, decidirão deixá-los viver.

Garrafas ao mar

Olho para o mar e só o que vejo é o mar de garrafas que nele eu lancei. Um mar de vidro cobrindo outro, de água. Se quisesse eu escapar desta ilha em que escolhi me perder, bastaria andar pelo mar, caminhando por sobre as garrafas que nele lancei. Será que Cristo teria se aproveitado dos infortúnios de alguém que como eu lançou milhares de garrafas? Enfim... Olho para as garrafas que flutuam até as vistas não mais alcançarem, e todas elas são endereçadas para ti, aí tão distante. Parece que não quer ler o que te escrevo. Sim, sei que lês com os olhos, mas não com o coração. E olha que é uma mensagem tão curta e simples, 5 letras apenas, 5 letrinhas tão somente.

A Cantiga do Amor na Maresia

Navegando nas marcas fundas do rosto dela, Antônio dizia: bom dia, meu amor, me dê um beijo que me vou agora. As lágrimas preenchiam os sulcos profundos da pele, descendo e desviando-se pelos caminhos, criando rios e lagos onde Antônio navegava, sorria dizendo: bom dia, meu amor.

Mas quando ela se afundava no travesseiro, mãos tapando os olhos para não ver a ausência, ela não ouvia seu bom dia. Só podia ouvi-lo quando chorava diante do espelho - podia então escutar seu riso de fonte entre os peixes, vê-lo a brincar nas marcas do tempo que estavam ali na sua pele, ele chamando e dizendo adeus, chamando e dizendo adeus. Estou acabando, também – ela pensava, consolando-se ao ver o vestígio do tempo sobre o seu corpo. Mas no fundo sabia que podia durar muitos anos, ainda.

Pra não dizer que moravam na lua

Viviam num cesto de vime, porque ali o amor era mais quentinho. Viviam num cesto de vime, porque não cabiam mais noutro lugar. Viviam juntos num cesto de vime para não lembrar o que fora, do cesto de vime, aconteceu.

O mundo não precisava mais das suas velhices, então os descartou. Assim como se descarta cestos velhos de vime.

O cesto tinha rodinhas. Enquanto ela dormia, ele, certo do seu amor, saia de dentro e empurrava para algum lugar bonito. Assim, quando ela acordava ele dizia:

- seu sonho nos transporta.

De tanto querer

Quero regar de rosas a água que escorre pelo teu corpo.
Quero rasgar as roupas que endurecem teu ser e fazem sufocar.
Quero correr como os rios e fazer do teu corpo minha foz.
Quero brincar em laços que prendem nossa pele em uma caixa de presentes.
Quero ser teu embaraço que faz enrubescer sorrindo.
Quero derramar em teu suor, minhas súplicas por mais tempo
Tempo de estar ao seu lado, em cima, embaixo, ou onde quer que eu esteja.
Tempo de não pensar em tempo e de querer apenas estar.

Comunicado

Fui acometido por uma forte dor no peito hoje. Ao chegar ao pronto-socorro fui internado imediatamente. Toda a junta médica disse que o que tenho é incurável: meu coração deixou de cumprir as funções de bombear o sangue por estar sobrecarregado em outra função - amar. É isso. Morri de amor por você hoje. Mas - curioso milagre - sigo vivo, mais que nunca!

Penhores

As ruas estão claras hoje. O sol fura meus olhos, uma gota de suor escorre pelo meu rosto, arde meu olho esquerdo e vai até o canto de meus lábios, onde se desfaz salgando meu paladar. Minha camisa úmida. Apesar da luz, do calor, da multidão, meu caminhar é solitário. De importante nele, apenas o cuidado com que seguro a pequena caixa de madeira sob meu braço esquerdo. Uma caixinha que já foi bonita um dia, sua madeira já foi clara, hoje é apenas uma caixa de madeira, pequena, encardida, mal cuidada. A fome dói um tanto, mas já não me preocupo mais com isso há tempos... E minha camisa úmida. Depois de uma caminhada chego ao meu objetivo: uma agência bancária. Vou ao segundo andar, o de penhores, o segurança me olha com desatenção, apesar da expressão que tenta ser intimidadora. Minha camisa úmida ainda. Puxo uma senha, me sento e aguardo. Olho para frente, nada vejo, nem quero ver. Continuo suando, apesar do ar-condicionado glaciamente desregulado. O número de minha senha aparece num luminoso vermelho, me dirijo ao caixa, que pergunta: "qual a jóia que quer penhorar?", estendo a caixa de madeira, que já foi bonita um dia, ele ajusta uma lunetinha nos olhos, abre a caixa e de repente levanta-se assustado, grita um palavrão, todos correm em minha direção, uma senhora vomita, um garoto grita: "caralho!", um segurança tenta pegar meu braço direito. Todos olham para a caixa tombada sobre o balcão, um filete de sangue escorre dela, olho para o caixa do banco que agora nota minha camisa úmida pelo meu sangue e digo, calmamente: "é meu coração, vale alguma coisa?"

ACHO QUE MEU CORAÇÃO NUNCA BATEU BEM DA CABEÇA

DESTROÇOS, DETRITOS, ATRITOS ATRAVANCADOS
A FUÇA CHINFRIM DE UM ESTRUPÍCIO...
MEU CORAÇÃO É UM MUQUIFO!
MEU CORAÇÃO É UM CAFOFO VAGABUNDO
TODO URINADO DE SAUDADES...
ABASTADO DE TERRENOS BALDIOS, POEIRENTO DE QUERERES
VÓRTICES ONDE NÃO ME ENCONTRO NUNCA. MEU CORAÇÃO É UMA ESPELUNCA!
CERZIDO PELAS MÃOS DAS COSTUREIRAS QUE FORAM MINHAS DESILUSÕES
CHEIO DE RETALHOS, BORRAS, CISCOS, POBRES DIABOS DOS QUAIS ME INCLUO...
GENEROSO PRA TRAMBIQUES DOS QUAIS RESULTAM EM BULHUFAS!
MEU CORAÇÃO É UM CALABOUÇO TORTUOSO, REPLICANTE, ANACRÔNICO, MALTRAPILHO, RETRAÍDO, ATAQUE E RETRANCA, SÓTÃO, SÓ...
OFICIO DE TRANCA RUA BEM DISTANTE DAS RAZÕES DO VEROSSÍMIL.
E AINDA GUARDA ESPAÇOS PRA PEQUENAS CENAS DE SANGUE NUM BAR DA AVENIDA SÃO JOÃO...
ACHO QUE MEU CORAÇÃO NUNCA BATEU BEM DA CABEÇA!

Algo que poderia ser como uma última lembrança ou sei-lá-o-que

Ou não pensava em nada, ou era aquele som ensurdecedor. Aquele mesmo som... De novo... Novamente... Mais uma vez. Gostava mais quando não pensava em nada. Nada. Porque a única coisa que conhecia por memória era o som das bombas. Nem mesmo lembrava que o nome do som era esse. Bomba. Não lembrava porque... Ou como... Ou o que... O que fazia ali? Quem eram aquelas pessoas sorrindo ao seu redor? Abaixem-se!!! Vocês não estão ouvindo esse som de... Esse som!!! Abaixem-se! Não conseguia entender... Não entendia porque sorriam. Ou como aquele espasmo facial era possível. Uma vez ouviu um garoto jovem dizer orgulhoso algo sobre "defender minha pátria!". Gargalhou. Fez o grupo de jovens se assustar, porque ninguém nunca havia ouvido a voz daquele velho louco. Gargalhou como não lembrava já ter feito algum dia... Não sabia bem porque gargalhava. Acho que foi aquela palavra: Pátria. Aquela crença... Tão obsoleta! Aquele mundo certamente era outro, não o mesmo que frequentara em um tempo onde ainda não havia o som das bombas. Um tempo sem o som de bombas? Sim... sem o som das bombas... Opa! Uma lembrança? Seria possível que ainda tivesse a capacidade de recordar algo além... Além... Além do... Não! Velho burro! Por que essa leda esperança? Aliás, por que fingir que esperança existe? Por que agora? Já não era um jovem ingênuo. Sabia: não houve tempo de homens sem o som das bombas.

Boi de piranha

À sombra da velha sete cascas, o menino ouvia ao longe um timbre anônimo e uma melodia familiar. Era um lalari-lalará de entardecer que o fazia duvidar da necessidade do verbo. Na amargura disfarçada da primeira infância, contemplava o mundo sem palavras ou orações, quase tocando com os lábios a trama grosseira de um tecido raro, fabricado com gritos que se perderam pelo labirinto da voz.

Encostou-se ao tronco úmido da silenciosa guardiã e fechou os olhos para enxergar a lembrança que atravessava seu corpo sem pedir licença. E a dolorosa imagem, na tela dos olhos de dentro, mostrava em cores e formas o animal dócil que um dia, não sem razão, ele batizou de Feio.

Lembrança Aquarelada

Olhos de despedida. Foi o que ela viu ao olhar para ele. Para ela, saída única. Despediu-se. Despediu-se de tudo o que poderia ter sido. Por dias e dias lembrou ela do tudo não vivido. Do prazer. Da dor. Da saliva. Do suór. Era uma lembrança amarela. Forte e viva, fosforecente até. Iluminava e ardia. Ela vivia de lembrar e lembrava, até mesmo, que ele estava a lembrar dela. A lembrança começou a ser maior do que ela. Era uma boca gigante que comia suas horas. A boca começou, depois de muitas horas devoradas, a comer as suas vontades. Foi aí que ela decidiu. Jogou água no amarelo fosforecente que aquarelou. Amarelo dissolvido em tom pastel. Colocou mais cores. Uma a uma. As tintas dançavam na água. O vento pincelava as formas. Suas vontades avisaram: Encontramos. Encontramos você.

Engolindo a Chuva

- Um copo de vento, por favor!

Disse um jovem ao dono do bar escuro, que prontamente lhe entregou o recipiente cheio daquela serenidade em movimento e disse:

- Bom para levar embora a água salgada que cai!

Virou o copo de uma só vez.

- Pronto. A tempestade foi embora, o chão da rua seca, e o sol está nascendo.

Continuou o senhor, dono do bar.

O jovem abriu a porta. Ao passar para o lado de fora do estabelecimento, percebeu o embuste.

Moon River

E tudo a sua volta parecia sorrir: o casal trocando um olhar doce de cumplicidade na esquina, o homem procurando moradia em um jornal de imóveis, o sol alaranjado tingindo os animados e os inanimados... só ali dentro dela chovia! E gostava da chuva. Não só por sua beleza quando cai do céu imitando cristais (às vezes achava até quase milagre!), mas também pelo cheiro que exala da terra quando encontra o chão: "- Estão fazendo amor!"- sempre pensava. "- A terra e a chuva..." Ah! E também o barulhinho dos pingos que pra ela lembrava o colo de sua mãe... Por isso dentro dela sempre chovia:  era amor e mãe, que são quase o mesmo!

Ela quase sem querer (quase porque nessa vida nunca sentiu-se de fato tão à vontade a ponto disso!) ia atravessar a rua quando seu telefone tocou. E na procura cotidiana o tempo fechou. Sim, o céu se escondeu por detrás de imensa nuvem negra. "- vai chov..." E mal terminou de pensar ouviu um trovão anunciando o porvir... Foi quando viu, do outro lado da rua seu homem/mudo. Ela sempre o via, apressado e calado e por muitas vezes pensou aproximação. Mas sua mudez era quase congênita. Na realidade não sabia se era ela que lhe inspirava a falta de palavras ou se era mesmo assim... quieto. E sempre que o percebia por perto procurava abrigo em sua infantil imaginação. E vinham os padrinhos, as flores, sabia até dos prováveis filhos: Pedro, André e João.  "- Nomes bíblicos, melhor assim!” E a música também! Ela o imaginava cantando, num jeito delicado de quando se dedica uma música a alguém...

Tá pensando que tudo é futebol?

Se eu não tivesse com afta até faria.
gravava em fita; uma serenata pra ela.

se eu não tivesse com afta, até a fita diria,
que já não mais representa, nem tenta.

Saudade não faz melodia,
e nem harmonia inventa.

o que a fita de fato fazia
ouvia-se àquele momento

mas logo se esquece o que é dito; e se edita
permita - é a tal tecnologia
e fita... não se usa mais... faz tempo.