D. Bendita

Pra quem a morte já rondava, os pudores eram lascas secas de carvalho. Ela podia voar, sem culpa, em  sonhos obscenos, trepando entre uma e outra nuvem recebendo o que o onírico, sem papas da língua, a presenteasse.

Podia dizer safadezas das mais horripilantes. Se esfregar, beijar de língua e roçar. E podia gostar daquilo. Cercada de noite, logo se aprontava: baby doll e lençol, batom em tom vermelho marrom, perfume: o de costume. Tudo obtido às custas da aposentadoria do finado.

Os corpos visitados não respeitavam gêneros, cores, nem números.

Era uma lambança...

E sonhos dessa qualidade não devem ser atributos da noite apenas. Então, um exercício de yoga para melhor idade: acordar, mas não abrir os olhos, respirar fundo e visualizar todo o trânsito lunar (pornográfico).

E dava certo, não esquecia um “movimento” sequer...

Tão certo que o dia exalava feromônio e até os postes agitavam suas luminárias quando passeava distraída em “pensamentos” pelas ruas.

E passaram-se dois, oito, treze anos de solidão picante.

Morreu assim, D. Bendita. Morreu dormindo e sonhando, ejaculada da vida, sem entender porque, somente em sonhos, o sexo nunca foi sinônimo de pancadas.

2 comentários:

  1. Molhada e aquecida - se esfregando em meu rosto...

    Na sua pele senti-me nascido e recriado. Pois se evito dizer carne é porque as partes expostas eram as menores consideráveis. Eram, ainda assim, as que eu com mais calor beijava; lambia, chupava e nelas cuspia. Se eu já sem pudor te tragava, eu fazia - como também as palavras - do pudor a parte que nada dizia. Mas a língua que fala é a mesma que penetra e tudo quanto você expelia me adentrava pela boca e pela uretra. E pelos poros e os orifícios todos, pois só daquilo que era fluído o significado me era acessível. Pois é da ciência santa daquilo que você ensina mostrar as falhas e as fraquezas de uma tal fisiologia, já que entre as suas pernas qualquer cheiro ou gosto tem a clamatória de uma profecia. E se eu comi do teu corpo, foi menos por religião que por promiscuidade, pois - em verdade - bebi do teu sangue com mais prazer do que aquele que se embriaga em vinho.

    E quando a fonte secou, eu te abrassei. Apenas porque me senti sozinho.

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  2. Outra avó - Eduardo Galeano.

    A avó de Bertha Jensen morreu amaldiçoando. Ela tinha vivido a vida inteira na ponta dos pés, como se pedisse perdão por incomodar, consagrada ao serviço do marido e à sua prole de cinco filhos, esposa exemplar, mãe abnegada, silencioso exemplo de virtude: jamais uma queixa saíra de seus lábios, e muito menos um palavrão.
    Quando a doença derrubou-a, chamou o marido, sentou-o na frente da
    cama, e começou. Ninguém suspeitava que ela conhecesse aquele vocabulário de marinheiro bêbado. A agonia foi longa. Durante mais de um mês, a avó, da cama, vomitou um incessante jorro de insultos e blasfêmias baixíssimas. Até a sua voz mudou. Ela, que nunca tinha fumado nem bebido outra coisa além de água ou leite, xingava com vozinha rouca. E assim, xingando, morreu; e foi um alívio geral na família e na vizinhança.
    Morreu onde havia nascido, na aldeia de Dragor, na frente do mar, na Dinamarca. Chamava-se Inge. Tinha uma linda cara de cigana. Gostava de vestir-se de vermelho e de navegar ao sol.

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