Cantoria em disparada

Hoje eu cantarei.

Retirarei pétala, por pétala do silêncio que engoli, e de minha boca nascerão sorrisos nunca vistos. O som da minha risada invadirá as salas mórbidas preenchidas pela monotonia da novela.

Cantarei para as panelas, para os móveis, para as plantas, cantarei na janela que por tanto tempo só suportou a fumaça do teu cigarro. E toda rua ouvirá esse gozo, toda a rua como num carnaval delirará, minha marcha cavocará corações amortecidos. Peço passagem.

Eu transe puro vagueio na melodia que já ensurdece os meus poucos decretos de realidade. Ele morreu, meu luto é uma ode. Ele morreu, meu luto é uma ode. Ele morreu, meu luto é uma ode. Meu corpo rasga todas as lembranças como numa expurgação. A canção explode, apaga as juras de amor, borra o desenho do prato, salpica pimenta no café. Corro pela casa, corro sem parar, saio para rua , o asfalto esfola meus pés, pouco importa, quero que a rua deixe esgarçada a delicadeza que sustentei com cremes de beleza.

Danço o carnaval, danço com o menino, com o mendigo, com a tua amante, danço no lixo, no mercado, danço na vitrina. O som de minha risada beija meu corpo, que gira, gira, sem pausa, contagiante. Vem uma criança e beija-me os pés, esse é Pedro, sei, reconheço a insegurança dos gestos, depois Luiz vem risonho, com os esmaltes que tanto escondi para que ele não estragasse, e começa a pintar todas minhas unhas, pinta e me faz cócegas, depois corre em disparada e voa. Os erês voam, pela primeira vez olho o céu que já não vive do outro lado da janela.

Olho meus pés vermelhos e encardidos, sinto os músculos exaustos diminuírem a vibração, a risada afrouxa, o silêncio nina meus olhos. A praça, lugar antes desconhecido, agora abrigo é para esse corpo vulgo, adormeço. Sinto meu rosto ser beijado por todos aqueles que me deram a honra desta dança. Espio. Todos adormecem na praça. O sol generoso já desponta, acarinhando a pele de todos aqueles corpos exaustos desse cotidiano enfadonho, dessa vida gerada no cartório, regida pelo som tímido, porém constante: tic tac, tic ta, tic t, tic, ti, t, hipnose nossa de cada dia. Mas nessa noite eu calei os ponteiros e cantei, cantei como jamais me foi permitido.

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