Aquele que fazia seu coração disparar

Começava pelos pés. Subia para o quadril. Balançava os braços. A cabeça e o corpo todo giravam. Era contagiante. Apenas para ela.

Arabela dançava o tempo todo e em qualquer lugar. Se estava sentada movia os braços num ritmo qualquer. Deitada, tremia o corpo no compasso dos próprios roncos. De pé, rodopiava e saltava, ultrapassando qualquer pessoa na fila do banco ou do mercado. As pessoas protestavam, queriam detê-la, mas a compulsão era tanta e era tão parte dela, que, nervosa em razão dos gritos de pare, dançava mais e mais, num ritmo cada vez mais alucinante. As pessoas fugiam, se afastavam dela, a isolavam. Triste, Arabela deslizava vagarosamente, as lágrimas acompanhando os movimentos de valsa.

Certo dia encontrou Samuel, aquele que fazia seu coração disparar. Sentada ao lado dele, tentou de tudo para se controlar; segurando o corpo inteiro, dura como pedra, falava constrangida sobre assuntos banais. Foi quando Samuel, entediado, lhe disse que desiludira-se com as palavras – que hoje em dia, na maioria das vezes eram vazias e falsas – que ela percebeu que era esse o momento tão aguardado pelo seu corpo.

Ele já virava as costas para partir: as mãos soltaram as pernas que se esticaram até os pés moldarem sua melhor ponta, os cotovelos abandonaram a cintura que se torceu, os braços soltos e leves, a cabeça girando; e Arabela saltou na frente daquele que fez seu coração disparar, no seu salto mais intenso e decidido, nas alturas, e dessa vez era de propósito, o descontrole era propício.

Depois de centenas de movimentos espontâneos e inimagináveis, Samuel percebeu que era aquilo que procurava a vida toda. O sentir. Era aquela que pensava não existir. Arabela.

Ela dançava a tristeza. Dançava a felicidade. Dançava a revolta. Dançava a glória. Dançava o mundo. Ela sentia.

Samuel atirou-se sobre ela num abraço e deixou-se levar nos rodopios que disparariam seu coração dali pra frente.

2 comentários:

  1. http://www.youtube.com/watch?v=l4ymiy5UxQQ

    TRAILER DE DANÇANDO NO ESCURO.

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  2. Compasso sem ponteiros

    A dança sem palavras,
    Escapa.
    Do ritmo retorcido e leve,
    Lá se vão mil labaredas
    E preces,
    A perturbar o deus-dará
    Dará um sopro de fugacidade
    E sairá correndo,
    Correnteza a dentro
    Esperando o carnaval passar...
    Chove no sertão do mar
    As chuvas mais estranhas que já se ouviu cantar
    E as passarelas, caminhadas, vielas
    Encharcadas de nuvens dissolutas
    Impolutas,
    Se transbordam em vinho
    E se pintam de um sentir cardíaco
    Preparando o nascer soluto
    Da liberdade...
    Que palavra mais artera
    De olhar mais absurdo
    E sorriso animalesco.
    Danço e conto os compassos nessas nuvens gentis
    Vão caindo pingos espalhados e febris
    E ao sentir tal rebeldia, tal amor e anarquia
    Peço a mim que nunca esqueça
    Quanto é doce essa falta de palavras
    E a ausência de ponteiros
    Nesse meu tempo cantado...

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