Mordeu. Feito manga fiapo nos dentes.
Lambuzou-se rosto, pescoço, mãos.

Escorreu. Peito, barriga, sexo.
Pés inundados.

Poça de gozo-fruta.
Bruta.

Enfim...chão.

Exercício Cotidiano

Veio se arrastando pelo chão
...de costas.

Ergueu as pernas longilíneas
Em cruz se exercitou.

Emitiu um grito gutural.

Vagarosamente... abriu as pernas
...até que os pés tocassem o chão.

...maliciosamente...sorriu.


Tudo que é Nação se estilhaça no ar

O estandarte da liberdade se abre a tempo
De ver os filhos, os pais, as avós e os sobrinhos
Em ritmo estonteante de anarquias diversas
Rodas gigantes tão gigantescas,
Que engolem ventos, moinhos, desafetos
Bolas fantásticas que se encantam diante dos olhos
Fazendo a maior incrédula acreditar em presságios
Tudo isso, para ter na boca um pingo de gosto
Do que é ser uma nação

Diziam por aí que nação é coisa de povo unido
De gente forte
De guerreiros tão valentes, que nunca fogem de nada
Nem da própria morte
Mas morrer pela nação é algo tão surreal
Quanto ter boca para comer toda a comida do mundo
Ou ter fome para matar a gula de poucos
É, nação deve mesmo ser algo de contos que contam por aí
Nesses cantos longes que não sabemos como chegar
De um Estado tão, tão pequeno, que não se pode ver
E morrer pela nação, avalie!

Mas também contam – isso eu ouvi de línguas populares
Que ter nação é sofrido
É doído como cair de um prédio e não morrer
É cruel como ter casa e não poder voltar
É tão angustiante, como ter chão e não poder andar
Sofrido, que nem fome dá
Ou dá, mas é tão vazio,
Que é como comer e não saciar

Imaginem então, como é ter nação inventada
Maquiada, figurada, animada
É como que se desmanchasse no vão
É como se não tivesse nunca,
Escutado essa palavra
Essa junção de letras e sílabas, que se espalham e partem
E se estilhaçam
Como os fogos
Que estouram por toda parte...

A Fera, O Poeta

Com a barba por fazer, papel e caneta,
Mais uma vez ele rabisca a noite,
E suas fantasias com o luar...
Um Marlboro vermelho queimando suave,
Enquanto ele assistia sozinhos os infinitos, ·Esbanjando sua inutilidade.

Ele ri
Ri bêbado, (sem álcool) das piadas (sem graça) de dor que a vida lhe fez,
Enquanto sua companheira Solidão enciúma-se
Da beleza que as estrelas perdidas do infinito dão ao poeta
Ao beijar seu rosto cansado,
O beijo de luz destaca uma lagriminha cortante e lenta,
Carregando uma nova poesia ébria.

É ele o tal poeta,
Que faz samba de valsa, e chora velórios de gente viva,
Que se perde antes mesmo de acordar,
Que brinca com o os sim's e não's sociais, encontrando e perdendo-se...


Oscilando entre um vago momento da sua loucura,
Um momento que não sabe se dor passada ou medo futuro,
Loucura de sinestesia, com aroma, cor e frio...
Loucura tipo Dali, loucura Piatam, loucura Drummond, loucura Cristo... Sei lá
Disfarçadamente louco...

Já não reconhece qual de seus muitos eu’s era o poeta,
Qual fragmento daquele luar, daquele malandro, daquele vagabundo,
Não sabe onde tornou-se o descontrole das emoções alheias,
O historiador das meretrizes, herói das donzelas, o filho dos pais e putas!
Tornou-se fera...

Escondido a traz de sua erudição poética, elegância eclética, rebeldia simétrica!
Tornou-se Fera,
Com garras e fome!
Com frio e sede...
Acordando, escondendo-se, comendo e chorando.

Machucando-se pela sua inconstância,
Em suas overdoses, porres, e madrugadas vadias,
Sendo sempre “A Fera”,
Enobrecido ao titulo “O Poeta”.


Allan Sobral

Cantos de Fera

'Ela é uma mina versátil
O seu mal é ser muito volúvel” (Fogo-fátuo, Chacal)

De um canto ela surgia assim, sem tirar nem por, abrilhantando o ambiente
Esmeralda adentra o recinto qual vulcão em erupção abrupta e feroz
Pernas num molejo ancestral avançavam pela passarela sinuosa
Em movimentos cheios de cadência, sensualidade e atitude
A noite só estava começando e ela estava pronta para impulsionar vontades
 
A cinta liga preta presa aos quadris sorridentes ondulava nas curvas sinuosas
Anfitriã, era exibida abertamente por debaixo da mini saia prateada justa
Os elásticos esticados sobre a coxa esguia convidavam ao luxo e prazer
A cada presilha aberta no acabamento rendado da meia, murmúrios impuros
Cantos avessos pelas mesas, redondas luas espiavam perplexas, caladas
 
Nos cabelos loiros uma flor vermelha liberava aroma almiscarado no ar
Embriaguez nos lábios negros ornados de explosões estelares misteriosas
No canto do olho esquerdo uma lágrima suspensa gemia... cristalina
Enquanto a tez pálida invadia as faces famintas do recinto casual e abafado
Mãos a buscar alento nos vãos do viver coletivo e insano do ser
 
O salto agulha negro avançava e esmagava os sonhos expostos na vitrine
Abrindo caminho, deixando rastros de fogo na queima veloz e efêmera
Fumaças movidas por braços embalados ao som do rock’n roll hipnotizavam
Luvas carmim... faíscas raivosas arremessadas a esmo pelo recinto escuro
Deslumbre, fetiche a vagar no palco entrecortado do ser moça criança

Longas unhas escorregavam insinuantes da boca para os fartos seios em riste
Servidos quais taças de espumante no sutiã dourado ornado qual seu nome
Banhados por miríades acanhadas que caíam diretamente do teto escarlate
Para saldar a beleza da fera a invadir a mata hostil... sorrateiramente
Guerra que avança numa constante e insana marcha do ataque a mão armada
 
Entre baratas, lixos, restos e mortos... derramava sonoras gargalhadas
                                   ...a cada canto filado....
Dançava, rodopiava, curvava, exibia o rabo e rastejava incansavelmente
Traduzindo a volúpia da roupa cara e suntuosa no seu interior íntegro
Felino, sombrio, revolto e impiedoso com seus algozes surreais que gemiam

 

 

 

 

 

 

 

O Fila Cantos



Todo mundo fila um canto em todo canto
vivemos filando a vida inteira
filar um canto em todo canto é uma regra
que une todos num só poema

Todos vivemos de filar, mas o sistema
finge que inventa aquilo que fila
dos esforços que rouba
Por isso eu filo, tu filas , ele fila
um olhar, um conto, um canto em todo canto
praticamos a arte de ser humano

Gosto de filar uns raios de sol nas manhãs
Gosto de filar o calor dos abraços do meu amor
gosto  de filar uma viagem em seu poema
filar um sustento do seio da terra
filar dos mares e desertos a dose diária
e pagar sempre com a alegria
de criar mais uma página de poesia

Seguimos juntos
Nos encontramos no caminho
cada qual com seu canto
encontrando-se nos cantos
sentindo-se menos sozinho
repartimos nosso pranto e nosso gozo
nosso canto e nosso sonho
tecendo numa teia de poemas
nossos medos nossos dilemas
dividindo o encanto
vamos nos transformando
criando raízes profundas
vamos resistindo ao calor do deserto
buscando nos lençóis subterrâneos
e nos abraços das raízes
segurar as chuvas que caem do céu
aproveitar cada gota de sua riqueza
para fabricar a seiva de nossas vidas

As lágrimas e o suor que escorrem de nossos corpos
regam essa semente acostumada ao clima hostil
vencendo o inverno a planta desse canto
flori como quem sorri debruçada nos abismos
cheia de dor e amor, graça, flor e espinho

Seus frutos semeiam labirintos nos morros
aprende com seu caos, participa de sua história
vamos juntos até o final, nossa maior glória
nessa luta desigual, semente anscestral
é desafiar a miséria com nosso ideal
reduto de esperança de justiça nessa terra
pela força com que se une a raíz
lança sua mensagem universal

Serendip Smash Brothers




Serendipidade

Príncipes de Serendib, Horace Wallpole
Capacidade de observação e sagacidade
Descobertas inesperadas para dilemas impensados

Sri Lanka, Sânscrito, Terra Resplandecente
Acentuando o grego, Tabrobana, Tamraparni,
Thambapanni, cor de cobre, o porto Kudiramalai
Tamraparni, Budismo Theravada
Na primeira estrofe de Os Lusíadas
Uma jornada além da Terra, a Atmosfera e o Ar

Enquanto macacos comem bananas
三猿 Mizaru Kikazaru Iwazaru
Homo sapiens sapiens cospem dinamites bombas atômicas
A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica



Deslumbre ou Para Januário (F.)

Acostumada com sua pequenez deslumbrava-se diante dos olhos dele. Ela que facilmente acostumava-se com o pouco, afogava-se agora diante da imensidão do azul velado. Como na história bonita que inventava quando menina...
Do alto de sua janela vislumbrava o céu também azul forrado de nuvens brancas. O tapete do céu era contraste com a dureza da sua fala. Não era boa em falar, soava bruta! Confundia–se com as inflexões! 

                       “Perto de você me calo, tudo penso nada falo...”
Mas não calava e ao tentar falar soava fora do tom :
Soava menor -  "Quero te ver!' virava -"Vamos beber cerveja?" ;
Soava fuga -“ Não entre em meu quarto” quando “ É que lá habita a bagunça dos dias solitários”;
Só o “ai, ai” queria dizer “ai, ai” :  ai de desejo, ai de suspiro - Soava barroco.

“Deslumbramento atrapalha o verbo”, pensava. Melhor mesmo só pensar porque pensar era natural: dentro dela era um eterno livro narrado sem pausas para o almoço. A ininterrupta transformação de galho de árvore em pássaro pousado.
(Borboleta amarela passa diante de seus olhos! Silêncio.
- Vida de borboleta é breve!) 
Pensou.
Deslumbre! Des-lumbre!   
E ainda numa brincadeira pensou. 

"- O deslumbre me escurece a fala."

"Amélia"


No limiar do céu escarlate
Amélia requebrava
Unhas compridas prateadas
Riscavam as estrelas
Braços alongados
Rodopiavam
As volumosas ancas
Pediam passagem
No movimento alegre
Risos morenos
 
Do pandeiro fez seu palco
Da cuíca seu lamento
Das estrelas estandartes
...rodopiava faceira
Os olhos arregalados
Gritavam por Januário
Enquanto o surdo moreno
descia a ladeira soturna
no cortejo vagabundo
de bêbados e prostitutas
 
Subiu assim Januário
Pros braços da doce morena
Figura singela e pacata
Sabia o homem encontrar
Amélia “mulher de verdade”
Como aquela nunca vira
Assim passou pela moça
E não a reconheceu
Mal sabia Januário
Que no céu tudo é às avessas

Quem é doido
Vira Santo
Quem é pobre
Fica rico
Quem chorava
Só sorri
Desalmado
Ganha alma
Deslumbrado
Ah, este continua....

 

 

Cozinha da carne


Desce a ladeira a marcha fúnebre
dos vagabundos e prostitutas,
gargalhando extravasados
“fodam-se” à sagrada família:

É o enterro de Quincas Berro d’Água!
A festa é cidade baixa,
É festa no mar!
...

“A pipa do vovô não sobe mais
A pipa do vovô não sobe mais
Apesar de fazer muita força
O vovô foi passado pra trás!”

“Ele tentou mais uma empinadinha
A pipa não deu nenhuma subidinha
Ele tentou mais uma empinadinha
A pipa não deu nenhuma subidinha”


...

Januário estava pego em lembranças. Diabos, como se divertia naqueles carnavais de outrora, da mocidade juvenil. Agora essa dor nas costa...

Sambista ortodoxo, marcador de responsa do surdo nos batuques da comunidade, agora tem que aguentar o mister Catra cantando a versão pancadão daquela saudosa marchinha de outrora. Raios que os partam, que vão todos pra puta que pariu!

Lançava maldições assim seu Januário, esquecendo ser ele mesmo gigolô das antigas, Leão de Chácara de responsa, conhecedor e mesmo padrinho de boa parte dos filhas da puta da sua quebrada. Não lembrava também que quando começou essa história de funk já era macaco véi dos bailão. Bons tempos daquele Black Power; agora ele é careca bola oito.

Na verdade Januário só está de mau humor mesmo, saudade que bateu doída no peito, saudades da Amélia; aquele jeito tão de repente inconsolável e derradeiro em que ela voou pro céu e faltou na terra ao mesmo tempo.

Agora, derramado todo o leite, esvazia-se nos sons surdos da multidão, entre a quarta feira de cinzas e o dia de Finados. Espera sua vez de virar passarinho (quem sabe besouro, mesmo um urubu-rei, um gaviãozão?). Enquanto isso observa lentamente os movimentos inertes de cada momento que passa.

“Essa carcaça véia é casulo, vai virá asa, ah se vai, to cozinhando!” diz aos amigos que chegam, pro carteado e pra cachacinha.

Decerto que, quando voar, vai ao encontro dela.

Correção

Sou um homem correto: estudei, trabalho, pago minhas contas. Casei, tive filhos, sustento uma família inteira com o suor do meu trabalho. Vieram os netos, e um deles, certo dia me disse:

- Vô, eu posso?

Algo me fez ter vontade de dizer sim. Talvez os olhos da criança que brilhavam. Mas lembrei que sou um homem correto.

- Não, não pode.

Pés no chão para evitar grandes quedas. Olhos brilhantes enchem a alma, não a barriga. Assim aprendi e agora ensino, pois sou um homem correto. E homens corretos não voam.

Sempre fora assim.

Voava com uma só asa; é que sofria de cacos!
Desde pequena era assim. Acostumara-se ao coração feito de margens e aos pés em desalinho.
Via formigas e pensava em mundos distantes. Olhava de perto aqueles corpos pequenos, irritantes, curiosos e pisava em cima deles. (tinha medo de amontoados!)
Via o céu e sonhava. Era mais difícil pois lá em cima tudo era possível.
Era difícil pensar no possível!
Por isso mesmo passava horas do dia se enredando nas nuvens,
cavalgando em algodões, pulando pó de estrela!
Os cometas eram seus preferidos!
Nunca compreendeu funcionamento de penas, as dos pássaros e as suas: como um pedaço de quase nada podia te levar pro alto? Como um pedaço de quase nada te tirava do chão?
Não compreendia muitas coisas. Como por exemplo: os gritos da vizinha com seu cachorro Banzé; como a água que é uma coisa transparente e que não dá pra pegar quebrava as telhas de sua casa; porque os mais velhos diziam “Vá com Deus!”
Talvez fosse seu coração feito de margens que deixava que o entendimento caísse nos vãos.
Gostava de flor! Dos infinitos cheiros coloridos. Esses eram de fácil entendimento:  - Flor tem perfume, oras! Até as que não se deixam sentir tem! Para essas só era preciso uma atenção especial de joaninha.
Aprendera que para voar uma espécie de agudo se formava entre o esforço e o vão do coração.
Aprendera que o agudo apitava! E que quando o agudo apitava um tremor irreversível  sacudia os cacos e acordava a asa.  
Voava com uma só asa. Doía. Ela não sabia que doía porque nunca tinha sido de outro jeito.
Só sabia que sempre fora assim.

Interiores

Deitou-se sobre aquela asa
Arrastou-se de um lado para outro
Fez daquelas penas sua morada, sua pele
Enrolou-se, aconchegou-se
Quieta, tranqüila
Até a manhã seguinte
 
Desperta, ergueu-se de supetão
Tentou livrar-se daquela c-asa
Tarde... ela já colara em suas costas
Bem na lateral esquerda
Sorrindo
Movimentava-se num abrir e fechar
Delicado, vagaroso
 
Sacolejou, puxou, gritou...
Tentou livrar-se da intrusa
Não conseguiu liberdade
Calada
Recolheu suas penas
Esperando pela metamorfose
Completa

Voos

Nada que vale.
Eu aqui parada e você aí mudo. Nada.
Permita-me que te conte uma coisa: você caiu já era tarde, você perdeu o rumo já era tempo.
Eu plantando sonho em terra seca e você queimado de tanto medo.
Estávamos aqui juntos construindo a tarde, proclamando o futuro em horizontes e como num domingo, por pura monotonia, você voou.
Nada.
A liberdade, eu defendia, haveria de nascer das minhas mãos, da labuta. Crescendo por caminhos ainda desconhecidos.
E você acreditava nela como uma dádiva divina.
Deus havia de ser um cara muito injusto, eu provocava. Ríamos juntos, como que sabendo que aquilo já era o princípio do abismo.
E para cada abismo que nascia eu inventava um pequeno prazer, como um laço que repara o buraco da roupa velha. E assim, quando olhava-me no espelho via uma menina  com a vestimenta toda enfeitada e ria, ria sem parar.  Apesar de  por dentro já sentir o incomodo de cada pequeno alfinete sobre a pele ainda sensível, desprovida de casca.
Quem por ali passava via só a menina de riso histérico e roupa colorida. E você também decerto , mesmo que despindo-me ao fim do dia e lambendo cada pequena ferida,  preferia guardar essa mesma imagem. E eu engolia tuas utopias, teus partidos, líquidos quentes  com os quais eu fingia saciar minha sede.
Des- culpe, meu a- mor.
Nada. Agora  a palavra é uma navalha. E sou eu quem a possuo.
Eu não sa-bia que.
Nada.
O medo  já não faz mais sentido, a queda fora longa. E você há de ter medo agora que já chegamos aqui, lábios tocando o asfalto seco? Nem água havia no fim . Tudo era seco e não havia som nenhum. Como a imagem de uma cidade em pause, inaudível, eternamente presa num sinal fechado.
Permita-me que te diga: Já era tempo. Já era um fim. Voa.
Eu ficarei aqui, não corro. Cresço comendo um-de-tudo que encontro pelo caminho, não se preocupe. Vai.
As asas que criamos juntos? Não sei. Nada que vale. Nada.
Ele cruzou a porta.
Fechei os olhos e senti as cócegas. Elas estavam lá. Eu as engoli você não soube. Gozo, voo secreto por dentro de mim. Tudo.

Kintsugi


金継

Rocha polida pelas ondas
Fenda tectônica
Cicatriz de batalha

Um co(r)po que caí
Um graffitti que sobe

De certo só corpo
Deserto sol cor e pó

Ouro e barro
Dourado de terra
Ocre sagrado

O náufrago sobrevivente
Surfista prateado
A pena e a espada

Vida que vai
na espuma do tempo
o fio da navalha


(r)


Preci-so sen-tar, pensou.

Não, não pensou. Caiu!

Ahhh, Caiu.

Rastros vermelhos pela casa. Manchou o carpete e a roupa. Ficou envergonhada e arranjou desculpas. Divagou sobre a gravidade, do ato e do ar. Depois de recolher seus restos pela sala, ensaiou um sorriso e ficou envergonhada. Antes de dormir, chorou. Uma hora da mão e outra no chão. Estava anônima até o estrondo no chão. Os olhos que antes cegos a sua presença, agora a julgam. Lembra da sua frieza que encostava em sua boca e a aliviava. Da refrescância de seu líquido. Suspira. Passa a mão nos lábios.  Uma hora da mão e outra no lixo. Não, definitivamente, não era sobre o corpo. Um r no meio do caminho que mudava tudo.

Porque são tão frágeis? Pensava fitando os sapatos ainda manchados. Por que somos tão frágeis. Pensava fitando os pés machucados. Como pode terem as mesmas finalidades mas serem servidos de formas distintas. Definidos por seu formato, origem e conteúdo, esses malditos adoradores de chá, caipirinha e água. Eram meros coadjuvantes de jantares mas as vezes elementos essenciais de festas. Quando caem, fazem barulho e são motivo de brigas e risos. Se cometem suicídio ou são arma de fúria, esperneiam no chão, se desintegram, fazem bagunça e sangram os pés dos desavisados. Dessa vez não foi só um corpo caído, foi o copo.

Assutada, achava ter relevado muito de si naquela cena. Afinal vida lhe ensinara que a forma como alguém reage a um copo de vidro no chão, a revela. Umas brigam, ficam emburradas e outras relevam e limpam. E a queda molhada acaba virando história de risos. O copo no chão é o símbolo do inesperado que desarruma tudo e cria a situação inconveniente, inesperada e incolor. Dizia a todos tentando filosofar sua queda e disfarçando o incômodo. Não é só um copo, pensou. Eo incômodo passou do copo ao corpo.

Parou.

Parou de respirar.

Bebeu.

Quebrou mais um copo.

Dessa vez não ficou atônita nem amaldiçoou a textura do vidro. Olhava para a bagunça e analisava os elementos no chão. Esparramados, molhados, em pedaços. Pegou os cacos na mão e se lambuzou do líquido do chão. Percebeu que não era só um copo caído. De repente, seu corpo também era feito de vidro e sua vida um retalho de cacos e manchas de líquidos. 

E o copo que caí no chão virou um amigo atrasado. Um amigo atraso era uma frustração. Uma frustração era a chuva que molha os pés. Os pés molhados eram uma resposta rude. A falta de gentileza era um dia ruim. Alguém esquecer seu aniversário era um parente indo morar longe. A falta de um pedido de desculpas virou mais uma demissão. O miojo diário era um amor não correspondido. Um plano frustrado, a surpresa inesperada que gera desordem e as coisas que não aconteciam como tinha previsto, viraram apenas um copo de vidro que caído no chão. Sujavam a casa, sangravam-lhe os pés, quebravam a louça mas se virariam motivos de risos ou rancores, dependia apenas do tamanho que dava ao que restava da queda.

Sábio são os gregos que fazem dos cacos comemoração, citava a si mesma orgulhosa. Depois, juntou os outros cacos que havia escondido debaixo do tapete e mesmo se apegando e gostando do chão limpo, passou a comemorar cada copo e cada corpo que uma hora está na mão e de repente, quebrado no chão.  E as coisas viraram só coisas, mas um copo no chão não era só mais um copo, era um corpo. Seus cacos continuariam cortantes mas eram mais leves.

E quando um co(r)po caia.

Respirava.

Lamentava em silêncio.

Juntava os cacos.

Limpava os líquidos.

E Sorria.



Gota

Shi ...shi ...shi ...shiplatft.
Gota.

Corria desenfreada pelas ruas. Tudo embaralhado. Ladeiras bambas em alta velocidade. Subia, doída. Cortou por becos, daqueles de entrada proibida, de passagem marcada a duras penas. Atravessou ofegante, sem pensar: talvez porque seu cérebro chacoalhava, talvez porque havia sangue em seu corpo, talvez porque havia se esquecido de pensar há muito e voltar não era fácil.

Vrum... vrum ...vrum

O vento nos ouvidos fazia cócegas! Lembrou da época em que sua mãe... Não. Não lembrou. 
Desviou de alguns gatos no caminho. Um deles era rajado de amarelo e branco. Olhos verdes. Esse,o de olhos verdes, acompanhou seus movimento trôpegos, passo a passo, impassível!  Por um instante seus olhos se encontraram: os verdes dele, os verdes dela. Ah!

Vazio.

Shi..shi..shiplaft.
Go-o-o-ta!

Faltava pouco para o topo. Mais uma escadinha improvisada, torta. Escorregou. -Ai! Levantou.
–Ai!Vai... tá chegando, pensou. Pensou não, lembrou. Não, não lembrou. Correu.

Shi...shiplat.
Gota vermelha.

Chegou.
Parou.
Olhou, ofegante a vista do alto.O mar!Ah...o mar!

...

O mar...
Ah...
...

O sol deitando-se suavemente no mar...

Vrum...vrumvrumvrum...Vrumm.

O vento nos ouvidos fazia cócegas!  Olhou e olhou durante algum tempo. 
Ah...
Olhou ao redor, estavam todos ali: a igreja imponente, a culpa, o medo, a decisão.
-Ai!

Shiplaft ...shiplaaaft...shiplaftshiplaftshiplatshiplaftshiplaft.

O chão embaixo dela avermelhou . O céu no horizonte avermelhou. De suas entranhas a chegada da noite se fez vermelha.
Vento.Ventre.Vermelho.


-Preci-so dei-tar, pensou. Não, não pensou.Caiu! 

Rosto nu



(crédito da imagem: autor desconhecido)

[samples e amostras,
até bactéria é cultura;
o que dizer de sons orquestrados,
palavras e raios de luz]

A Sinfonia Anônima do Muro

Presto. Prestissimo.
[Con Spírito] Lado a lado, um a um. Na longa fileira, homens e mulheres sem nome lado a lado e um a um. Gemendo, gritando, grunhindo, urrando – em silêncio. Transeuntes mudos passando tranquilamente (mentira) do outro lado do muro indo pra algum lugar (mentira) que não sabiam bem nem ouviram (mentira) os gemidos, gritos, grunhidos, urros que do lado de cá ecoaram dentro do silêncio. Quando lado a lado foram caindo um a um sem nome e lado a lado, sempre. As balas flutuando pelo ar, uma a uma, os corpos caindo como trapos sujos, seguidamente, complexa coreografia, um balé, e a plateia que vivia do outro lado do muro não foi convidada para o espetáculo, [Ritardando] que pena.

Seu José de Dona Madalena

Seu José faça o favor, de não parar de sonhar
De não parar de parar, na hora de trabalhar
De não deixar de olhar, pro lado escuro da sala,
Pro outro lado do muro,
Pro canto oculto da casa...

Seu José nos faça o favor, homem de deus
De não esperar em seu deus,
De não esperar pela urna,
De não esperar pela chuva...

ENTRE ASPAS

(Numa porta giratória, um homem estressado)

1 - Eu já disse que não tem mais nada, olha minha bolsa!
2 - Não posso olhar, senhor! A empresa não permite que eu reviste clientes, pode causar constrangimento.
1 - Mas eu tô pedindo pra ser revistado, euuuuuu to pedinnnnndo! Tá todo mundo vendo, eu quero ser revistado!
2 - Senhor, não tem nada de metal na bolsa? Talvez a fivela ou seu cinto…
1 - Já disse que não! Que merda! Eu os preciso fazer esse tramite! (joga bolsa no chão e fica com um papel na mão) Eu entro só com o papel!
2 - Senhor, a empresa não se responsabiliza pela bolsa deixada do lado de fora.
1 - Eu me responsabilizo, abre essa merda dessa porta!

Seu Zé

Há mais de trinta anos, Seu Zé trabalhava como faxineiro em uma escola da periferia da zona sul da cidade de São Paulo.

No início, tinha a vassoura e o esfregão apenas como seus parceiros temporários. Sonhava em ser artista de cinema. Mas, com o passar dos anos, o temporário transformou-se em definitivo e ser artista de cinema já não mais passava de um sonho impossível de se realizar. Foi abatido por forte depressão ao se deparar com tal constatação, como se tudo não tivesse mais sentido. Comer, trabalhar ou até mesmo respirar já não indicava a direção de nada a ser alcançado. Repetia a mesma rotina todos os dias com um profundo mau humor. Era como se cada sala que ele limpava o tornasse mais sujo, pesado de tanta sujeira.

Até que, num certo dia, ao varrer a sala da 7ª série, encontrou um pedaço de papel, um tanto amassado, com algumas palavras, quase que por completo cobertas pela sujeira. “Nem sei porque, (...) espero (...) poder (...) dizer (...) te quero!” Fragmentos de um texto, de uma carta de amor. E Seu Zé começou a remontar em seus pensamentos aquela carta de amor e imaginou o garoto, a garota, a situação, tudo bem nítido como se estivesse assistindo a um filme de cinema. Ficou quase duas horas, parado, apoiando o peso do corpo nas mãos que pairavam sobre a ponta do cabo da vassoura, imaginando.

O verbo é a alma da língua

Dos muitos professores e professoras que tive, poucos permanecem até hoje em minha memória. Manoel de história, foi um dos desses professores que nunca esqueci. Estava na sexta série, e no primeiro dia de aula ele entrou na sala cantando em voz grave e firme: "Boemia, aqui me tens de regresso..."

Eu não sabia o que era boemia nesta época, não sabia também que me apaixonaria por ela. Mas, aquele modo novo – para mim – de começar uma aula me convenceu de que aquele professor era diferente. Ele gostava de ser chamado de Nenel, que era como sua avó de 87 anos o chamava.

Outros professores insistiram em se agarrar a minhas memórias afetivas do tempo de escola. Professora Ariadne era outra delas. Não entrava na sala cantando, não fazia piadas, nem tirava pontos de alunos que erravam as bolinhas de papel lançadas ao lixo.

Ariadne mascava viciosa e serenamente  um chiclete com cheiro de hortelã, mandava seus alunos soletrarem palavras, passava dever de casa todos os dias, em resumo, era a "pior" professora que um jovem de treze anos poderia ter.

O décimo sétimo verso

1   Não há reis que lavrem seus muitos campos,
5   Quem, por ventura, colhe aos olhos as cores?
2   como fazem aos montes uns outros os deles
6   melodias, encantos, os prantos e os versos?

3   Não há nas fábricas ou lojas filósofos tantos,
7   Brutos, sensíveis, mesquinhos e acolhedores
4   é também o contexto que fabrica os haveres
8   não vos enganai com estes humanos excessos

A Morte Prematura de uma Dúvida

O coração gaguejava lamentos sob o sol a pino. A garganta seca não podia mais. Os balbucios perderam-se pelo caminho. O coração gaguejava sob a solidão a pino – um abandono que queimava a pele, rachava os lábios. Era assim. Um homem só neste mundo de milhões.

O coração gaguejava sobre a terra rachada, a boca rachada calava, a garganta seca engolia um árido silêncio. No estômago só a raiva e uma úlcera dolorosa – na falta do alimento, o órgão devorava a si mesmo. No intestino, vermes. Na falta dos restos que a vida lhe negara, que então outras vidas inermes se alimentassem de sua polpa escassa.