(r)


Preci-so sen-tar, pensou.

Não, não pensou. Caiu!

Ahhh, Caiu.

Rastros vermelhos pela casa. Manchou o carpete e a roupa. Ficou envergonhada e arranjou desculpas. Divagou sobre a gravidade, do ato e do ar. Depois de recolher seus restos pela sala, ensaiou um sorriso e ficou envergonhada. Antes de dormir, chorou. Uma hora da mão e outra no chão. Estava anônima até o estrondo no chão. Os olhos que antes cegos a sua presença, agora a julgam. Lembra da sua frieza que encostava em sua boca e a aliviava. Da refrescância de seu líquido. Suspira. Passa a mão nos lábios.  Uma hora da mão e outra no lixo. Não, definitivamente, não era sobre o corpo. Um r no meio do caminho que mudava tudo.

Porque são tão frágeis? Pensava fitando os sapatos ainda manchados. Por que somos tão frágeis. Pensava fitando os pés machucados. Como pode terem as mesmas finalidades mas serem servidos de formas distintas. Definidos por seu formato, origem e conteúdo, esses malditos adoradores de chá, caipirinha e água. Eram meros coadjuvantes de jantares mas as vezes elementos essenciais de festas. Quando caem, fazem barulho e são motivo de brigas e risos. Se cometem suicídio ou são arma de fúria, esperneiam no chão, se desintegram, fazem bagunça e sangram os pés dos desavisados. Dessa vez não foi só um corpo caído, foi o copo.

Assutada, achava ter relevado muito de si naquela cena. Afinal vida lhe ensinara que a forma como alguém reage a um copo de vidro no chão, a revela. Umas brigam, ficam emburradas e outras relevam e limpam. E a queda molhada acaba virando história de risos. O copo no chão é o símbolo do inesperado que desarruma tudo e cria a situação inconveniente, inesperada e incolor. Dizia a todos tentando filosofar sua queda e disfarçando o incômodo. Não é só um copo, pensou. Eo incômodo passou do copo ao corpo.

Parou.

Parou de respirar.

Bebeu.

Quebrou mais um copo.

Dessa vez não ficou atônita nem amaldiçoou a textura do vidro. Olhava para a bagunça e analisava os elementos no chão. Esparramados, molhados, em pedaços. Pegou os cacos na mão e se lambuzou do líquido do chão. Percebeu que não era só um copo caído. De repente, seu corpo também era feito de vidro e sua vida um retalho de cacos e manchas de líquidos. 

E o copo que caí no chão virou um amigo atrasado. Um amigo atraso era uma frustração. Uma frustração era a chuva que molha os pés. Os pés molhados eram uma resposta rude. A falta de gentileza era um dia ruim. Alguém esquecer seu aniversário era um parente indo morar longe. A falta de um pedido de desculpas virou mais uma demissão. O miojo diário era um amor não correspondido. Um plano frustrado, a surpresa inesperada que gera desordem e as coisas que não aconteciam como tinha previsto, viraram apenas um copo de vidro que caído no chão. Sujavam a casa, sangravam-lhe os pés, quebravam a louça mas se virariam motivos de risos ou rancores, dependia apenas do tamanho que dava ao que restava da queda.

Sábio são os gregos que fazem dos cacos comemoração, citava a si mesma orgulhosa. Depois, juntou os outros cacos que havia escondido debaixo do tapete e mesmo se apegando e gostando do chão limpo, passou a comemorar cada copo e cada corpo que uma hora está na mão e de repente, quebrado no chão.  E as coisas viraram só coisas, mas um copo no chão não era só mais um copo, era um corpo. Seus cacos continuariam cortantes mas eram mais leves.

E quando um co(r)po caia.

Respirava.

Lamentava em silêncio.

Juntava os cacos.

Limpava os líquidos.

E Sorria.



3 comentários:

  1. JOGRAL

    Pontiaguda flecha
    Obtuso arco
    de fuga, linha jogada
    de filacantos emaranhada

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  2. A QUEDA

    Caiu o objeto da mão,
    Findou, fundiu-se o pensamento,
    Como ondas quebrando nas rochas

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