Hotel Amargo

Surpreendeu-se com os olhos fixos no teto. O olhar dele, que antes percorria inquieto as coisas e o mundo, as coisas dentro do mundo, ou o mundo dentro das coisas, agora dera para estatelar o nada. Olhou para dentro de si mesmo. O tempo correu. Surpreendeu-se olhando para dentro de si mesmo. Desviou os olhos. Pensou que deveria acender a luz do quarto, passava das seis horas da tarde, o escuro aparecendo e dramatizando tudo, pinceladas expressionistas sobre sua incapacidade. Paredes, móveis. Permaneceu deitado, porém. Fitou os pés magros aparecendo na barra da calça do pijama, brincou um pouco com os pelos lisos da barriga. Cruzou os braços sobre o peito, tentando encapar o movimento com o embrulho da superioridade, mas conseguia ouvir o barulho do chuveiro em que o outro se enfiara, imaginava os olhos dele ardendo por causa do xampu barato. Sentou-se na cama, bruscamente.

Era estranho. O quanto sua capacidade de enxergar aumentara, a partir do momento em que passou a usar os olhos dele. Quando era criança, costumava achar que o mundo terminava naquela linha, naquele limite redondo que a vista alcançava. Ficava imaginando que se a pessoa desse um passo além do horizonte, essa pessoa cairia. O que antes era apenas intuição, agora se tornava uma verdade. Ele foi além, e caiu.

O par de tênis num canto do quarto, as meias sujas estranguladas. Ele pensou se de repente viver não seria estar com as meias sempre sujas ou encharcadas. Riu do próprio pensamento. Saiu da cama. Não cruzou os braços, conformado.

O corpo do seu homem debaixo do chuveiro. Lembrou do gosto da porra dele, dos cigarros partilhados, do campari, do aperto, da cicatriz ridícula e asquerosa nas costas dele, mas que beijava com uma ternura assustadora para si mesmo. Pensando melhor, agora achava a ideia de horas antes completamente absurda. Encontrar com ele em meio ao cheiro de mofo asséptico daquele quarto de hotel, fungos e eucaliptos. Agora, depois de tudo, o outro se enxugava com a toalha puída e encardida, como se não estivesse dentro de uma situação nova, como se fizesse isso desde sempre, libertando-se do "nós" com muito mais facilidade do que ele. A solidão de ambos de repente individualizava-se ainda mais. Esperou que ele saísse do banheiro.

Andou de um lado para outro do quarto, roendo as unhas, os olhos úmidos. O tempo passava. Descobriu que a dor do mundo era essa : o tempo passava, e as dores permaneciam. Leu um parágrafo de um livro do Jean Genet que havia trazido para mostrar pra ele. Mas o outro nem se importara, não era dado à poesia. Gostar de alguém talvez significasse sentar no centro de um poço escuro. Colocou o livro de volta no criado-mudo, acendeu um cigarro, mirando-se no espelho embaciado, ao lado da porta.

O outro apareceu. Saiu do banheiro já completamente vestido, talvez para humilhá-lo. Ambos desviaram os olhos, sentados que estavam em escuridões cheias de água e limo. Dissimulavam, com medo de perder. Trocaram palavras entre mentiras e fumaças de cigarros. Apesar de tudo, apesar da dor, apesar da morte existindo dentro de cada um deles, houve um movimento inesperado em direção à algo em comum, uma ânsia em comum, um mistério em comum. O tempo passou. Anos se passaram. Deixaram de existir.

Um comentário:

  1. João Guimarães Rosa

    "Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
    E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
    Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
    vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
    um crocodilo porque amo os grandes rios,
    pois são profundos como a alma de um homem.
    Na superfície são muito vivazes e claros,
    mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
    como o sofrimento dos homens."

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