Sobre um Conto de Ninar

Era uma vez uma menina que não se chamava. Que ninguém chamava. Ela não tinha nome.
Uma menina que não morava em nenhum lugar. Ela não estava nem permanecia. Ela não tinha vizinhos não tinha pai nem mãe. Uma menina que não nasceu, não foi cuspida, esculpida ou escarrada, nem no lixo nem no mármore.
Era uma vez uma menina que não respirava, que nem o ar lhe passava. Que não dizia nada não ouvia nada. Ela não tinha voz nem ouvidos. Uma menina que não era menina.
Uma menina que não dormia nem acordava. Ela não tinha olhos ela não via nada ela nunca viu um chapéu nem um passarinho nem sapatos nem criança.
Uma menina que não tinha tripas não tinha estômago nem rim nem coração ela não tinha nada. Uma menina que era um monte de nada e de nunca. Nada e nunca dentro dela num monturo, no meio do dentro que não tinha fora.
Era uma vez uma menina que não chorava. Não brotava água dela. Uma menina que não ria. Não tinha força para um espasmo de gargalhada, não lhe saía força.
Uma menina que nunca incomodava.
Ela não tinha mãos nem pés nem cabeça. Uma menina que ninguém via.

Mas pairava, uma presença.

Ela nunca viu a praia nem a rua. Nem a lua e nem o sol. (Será que a praia a rua o sol a lua viam a menina será?)
Ela não tinha nenhum brinquedo nem amigo. Ela não ouviu uma história nem música ela nem sabia o que era música. Ela não ouvia história ela não tinha história nem estava numa. Só nesta, mas agora.
Era uma vez uma menina que não olhava pela janela ela não tinha casa nem quarto e não tinha portas. Ela não ia nem vinha. Iam e vinham e passavam por ela e ela nem. E quem passava nem também.
Ela não comia não tinha dentes nem saliva. Uma menina toda vazia que não parava em pé. Ela nem tinha pés. Uma menina que era uma fome.
Ela nunca gritou nunca gritava. Nada vibrava nela.
Ela não via a cidade se movendo nem roupa no varal nem trem nem bicho nenhum nem nuvem nem corda nem terra nem margaridas nem. Uma menina que era uma coisa. Se você visse, uma coisa! Mas era coisa sem nome sem forma sem cheiro sem nada.
Era uma vez uma menina que não tinha nada. Uma menina que não tinha nome.

E não foi aí que nada.
Não foi nada.
Nada veio.

Era uma vez uma menina-paisagem. Mas os olhos não viam, era paisagem de viagem, que corre e desmancha, desmancha e vai embora, e vai e nunca se pode lembrar.
Uma menina que se confundia com tudo o que não fosse menina.
Foi uma vez. Uma menina que continua aí tão sem, nas outras. Ela não termina.
Era uma vez uma menina que não tinha começo.
Era uma vez a menina que não tinha mais fim.

3 comentários:

  1. A Casa
    Vinicius de Moraes

    Era uma casa muito engraçada
    Era uma casa muito engraçada
    Não tinha teto, não tinha nada

    Ninguém podia entrar nela, não
    Porque na casa não tinha chão

    Ninguém podia dormir na rede
    Porque na casa não tinha parede

    Ninguém podia fazer pipi
    Porque penico não tinha ali

    Mas era feita com muito esmero
    Na rua dos bobos, número zero

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  2. Anette Assise- de Alberto Giacometti
    Imagem:

    http://bertc.com/subsix/g132/giacometti.htm

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  3. Da metafísica, da felicidade e outros nomes

    Era uma casa muito engraçada
    Não tinha teto, não tinha nada

    nimguém podia entrar nela não
    porque a porta, e mesmo se existisse,
    estaria fechada

    Ninguém podia dormir na rede
    porque as pessoas que nela não moravam
    sofriam de insônia

    Ninguém podia fazer xixi
    Isso de se questionar:
    que rins estariam dispostos
    a fazer fluir a urina
    em casa tão ausente de
    alguma fisiologia como aquela?

    Era uma casa muito engraçada
    sem telhas, nem vigas, nem nada

    Ninguém podia nela nem tomar banho
    porque um não dono qualquer
    respaldado pela ausência de responsabilidade
    que (não) o acometia sobre essa função
    não comprou sabonete, nem pagou á conta d`água

    Ninguém podia nem ao menos olhar pela janela
    nem de dentro para fora,
    menos ainda de fora para dentro
    Porque não havendo existido, de fato, janelas
    cumpria-se ali, em lugar nenhum,
    uma topologia particular em que
    nem vidente nem visível se estabeleciam
    lado a lado, dentro ou fora,
    presentes ou ausentes que fossem.

    Nem IPTU algum foi pago, porque não havia dinheiro
    no mundo inteiro ao redor dessa casa
    que fosse suficiente para aquele valor abissal
    medido em zeros e em vírgulas sem fim
    e ainda assim carregadas dos finais
    sem limites e ainda assim limitadas
    ad aeternum pelas extremidades que
    ali não cercavam, não preenchiam
    e tampouco libertavam


    Ninguém podia nem considerar a possibilidade
    remota e ainda assim inexistente
    inimaginável e ainda assim sem haver
    imaginação alguma como medida
    de uma ligação não feita
    a alguém que jamais atenderia
    diante de um aparelho que, em suma,
    ali ou do lado outro, nunca existiu

    Também porque uma conta de telefone
    num boleto jamais emitido,
    e nunca, desde então, enviado
    por sistema de correio algum
    não houve, do mesmo modo, sido paga
    por não dono outro

    dinstinto e indistinto dos incontáveis
    não donos que em momento algum
    reivindicaram a propriedade
    cuja escritura jamais foi escrita
    e suas cópias improváveis
    jamais foram impressas


    Um dia, ouvi de um homem solitário
    que numa casa como essa, ele imaginava
    suas filhas brincando nos balanços
    pendurados em barras erguidas no jardim

    Que numa casa como essa, ele imagiava
    sua amada esposa acenando da varanda
    com sorriso empunhado e lançando amor
    ao vento úmido que por lá circulava

    Esse homem se chamava Nelson.

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