Primeira de Mangueira

O sambista: gari, bacharel, manobrista.
Pai de Santo, pau de arara. Autista:
O sambista está dormindo,
Mas não tarda em acordar.

Alvorada, o dia, à tarde, à noite,
a madrugada toda, raposas e gatos,
macacos e ratos fuxicam,
fornicam e fuçam, e roncam.

Estação

Perdi o ultimo vagão para a estação triste
Caminhei nos trilhos como se fosse feliz
Aprendi que as pernas seguem os pés
Em qualquer trilho que se sabe aonde quer
Passeio de pedra em pedra
Uma no bolso
Outras para trás

Minha música muda

E naqueles olhos eu morri.
Calei minha voz aguda.
Perdi!

A luz, o palco e o movimento

Há uma lebre morta embaixo da primeira cartola.

Há uma lebre morta embaixo da segunda cartola.

Há uma lebre morta embaixo da terceira cartola.

Embaixo da quarta cartola, há uma lebre morta.

Há uma lebre morta, também, embaixo da quinta cartola.

Há uma lebre embaixo da sexta cartola: morta.

Há, morta, embaixo da sétima cartola, uma lebre.

Há, enfim, lebres mortas embaixo de uma oitava e nona cartolas.

Eis que o mágico, então, uma cartola levanta – a décima.

Obscura luz

O jardim da noite cidades em chamas,
enxames de abelhas de luzes elétricas.
Mas damas e rainhas ainda perfumam o ar.

As sombras estão cheias
de cores, pulsos e sangue.
O silêncio que ouço no barulho,
e o seu contrário multidão.

Parabólicas Bucólicas

“Todo dia o sol da manhã vem e lhes desafia
 Traz do sonho pro mundo quem já não o queria
 Palafitas, trapiches, farrapos, filhos da mesma agonia” (Paralamas do Sucesso)

Na cidade estendida qual rede a quarar
O corpo desfalece clamando por água e sal
No ar circularidades de ondas a invadir
Ouvidos e corpo inerte
Que valem as ondas invisíveis a nos vigiar?
Que valem as ondas levando e trazendo
Notícias de um mundo fantasia?

do que somos

Meu amor
Quando você fez em mim espaços de aterrissagem
Cheio de promessas de flores, frutos e vôos
Não olhou pra terra nos meus pés

Toda sorte de presentes
Todo gosto por partilhar
Me fazem desembocar no mar
Fluindo leve
Feliz pleno até do perfume
Mas olha: não vou sozinho
E muitos deles, não sabem nadar

Fragmentado

Há dias na estrada. Não me acostumo com a distância. Não essa. Horas a fio tecendo com o olhar uma geografia longínqua e estia, quiçá até íntima, já nem sei, agora que até meu corpo parece às avessas, sem lugar, se confundindo a tudo que me é solidão. Tudo que me é memória. Um indício ralo deixado lá atrás, a quilômetros de distância daqui, esse ínterim roçando cada pedaço de chão a que aporto. Agora mesmo levo o cigarro à boca com os olhos lá fora no estacionamento, tão longe que me perco em mim mesma, a poeira cobrindo o capô do carro e tudo a volta. E Deus parece a milhas distante daqui, faz vista grossa a nós duas, vê?, talvez nem ouça Dylan baixinho no rádio como eu o faço, com o cigarro na boca e lembrando que dias antes de apagar cada prova de minha antiga vida e bater a porta e dar com o dia me pesando sobre o dorso feito dúvida, dias antes eu me decidira por você. Sobretudo me decidi por você, deitada rente ao sono. Ainda levo os sentimentos nos poros, junto aos grãos de areia, em cada ranhura de minha pele, no talho sob as gazes feito guardados de memória. Talvez não me livre disso, logo vira cicatriz e a leve comigo, atada aos pulsos. Trago o cigarro com ânsia, certa gana nesse corpo cavo, ausente. Não durmo. Fecho os olhos. Sob as pálpebras fantasmas se esgueiram no breu, meio da noite ainda, feito os pesadelos de quando criança, quando a madrugada salivava suas sombras no teto e eu temia me debruçar sobre o sono para não mais acordar. E então não dormia, feito agora, insone, e tecia minhas fugas horas a fio. Até crescer, descobrir o corpo, um dique que não se rompia nunca, mesmo que eu quisesse, ainda que me esvaísse pelos pulsos, não se rompia nunca...

Semente

Tenho sede do mundo,
Como se o mundo me tomasse em arrastão
Tenho fome de carnavais lunares,
De rasos profundos
Como se eu fosse inteira cometa,
Como se as vozes fossem trombetas
Anunciando as marés e luas cheias

Tenho um mundo explodindo nos poros
A sair pelas narinas
Chamado pela luz do sol, pelas gotas de chuva
Pelo suor da minha dança,
Que prepara um rito,
Para o arrastão passar

Liberdade embalada

Olhou para a porta, pensou em como seria bom poder sair dali e pelo menos um dia (depois de tantos) ver o sol partir. Mas lembrou da nova máquina de ponto que instalaram há algumas semanas e olhou para os dedos, ainda faltavam duas horas. Portanto, se ausentar não podia.

O despertador era programado para todos os dias tocar no mesmo horário, pensou em desliga-lo, mas isso seria descontado no final do mês. Acordou, como de praxe, as 5:30 da manhã.

Pensou em dizer o que pensava, mas seria chamada de insolente pelo cliente e isso lhe custaria bem caro. Calou-se.

Embalo da Liberdade

Experimente
Sair de cena
      Ausente-se!


Experimente
Chegar mais tarde
           Desligue-se!


Experimente
Dizer o que pensa
          Distraia-se!


Experimente
O silencio...


Experimente
Ser bem livre
Isso, mais do que experimente!


Pra ver se é
Bem isso mesmo...
Que te embala
Livremente...

Memória

Certa vez, em alguma esquina da vida, encontrei um garotinha, linda, seus traços beiravam a perfeição, apesar de suas imperfeições caóticas, era linda.

Olhar expressivos, confusos a ponto de não se decidirem nem quanto a cor, apesar da aparente confusão, por vezes decididos, por vezes inseguros, transmitiam alguns sentimentos e informações nobres, a quem tivesse o interesse, a paciência e capacidade de desvendar.

Vivia como em uma espécie de mundo só seu. Com seus fantasmas, suas angústias, seu (des)amores, suas alegrias, suas tristezas, suas fantasias, loucuras, perversões.

da solidão

no peito
um deserto
inteiro, sem reservas
me abocanha
o ser
- esse verbo
latente
habitando as reentrâncias
da geografia tortuosa
do corpo

Cabotina ironia

Do outro lado da rua
em frente ao espelho
a terceira margem do rio:

A linha de fuga
no horizonte virtual
de uma solidão fragmentada:

Algo se debate
que não fica à vontade
e na deriva se deixa levar:

em multiplicidades.

Penteando a barba

A literatura que se instala em meu peito não é aquela que me alcança através dos olhos ou dos ouvidos, senão a que tem olhos e ouvidos próprios e me encara diante do espelho. Mas, então, responda-me seu grandessíssimo cabotino: Por que tanto amor dado a si e nem ao menos bom-dia a uma pobre alma que estende a ti sua voz do outro lado da rua?





Como veis, é somente o silêncio que contorna esse corpo. E solidão é o que o preenche.

Hotel Amargo

Surpreendeu-se com os olhos fixos no teto. O olhar dele, que antes percorria inquieto as coisas e o mundo, as coisas dentro do mundo, ou o mundo dentro das coisas, agora dera para estatelar o nada. Olhou para dentro de si mesmo. O tempo correu. Surpreendeu-se olhando para dentro de si mesmo. Desviou os olhos. Pensou que deveria acender a luz do quarto, passava das seis horas da tarde, o escuro aparecendo e dramatizando tudo, pinceladas expressionistas sobre sua incapacidade. Paredes, móveis. Permaneceu deitado, porém. Fitou os pés magros aparecendo na barra da calça do pijama, brincou um pouco com os pelos lisos da barriga. Cruzou os braços sobre o peito, tentando encapar o movimento com o embrulho da superioridade, mas conseguia ouvir o barulho do chuveiro em que o outro se enfiara, imaginava os olhos dele ardendo por causa do xampu barato. Sentou-se na cama, bruscamente.

Era estranho. O quanto sua capacidade de enxergar aumentara, a partir do momento em que passou a usar os olhos dele. Quando era criança, costumava achar que o mundo terminava naquela linha, naquele limite redondo que a vista alcançava. Ficava imaginando que se a pessoa desse um passo além do horizonte, essa pessoa cairia. O que antes era apenas intuição, agora se tornava uma verdade. Ele foi além, e caiu.

íntimo

... Trazia os olhos sobre uma memória, e a fiava com o silêncio de quem pura e simplesmente se pega a remoer o passado numa dobra ou outra do dia. Não a notariam - não ali sob o finzinho de tarde, com os olhos sobre o guardado de fotografia que trazia consigo, amarelado, alguns rostos (felizes?), o passado alinhavando aquela lonjura de anos a fio - ranhuras, as nódoas na pele, já cansada. O tempo, esse que mal sabe, mas tão presente agora. “Cá dentro não me esgoto, me farto”, ali, dedilhando sentimentos, “palavra dá corpo a sentimento?”, perguntava-se. Sabia mesmo que tardes iguais àquela roçavam o peito, e se por segundos fechasse os olhos, num gesto vago, lhe brotaria sob as pálpebras a saudade de um amor feito lá atrás, quando ainda não era ausência feito agora...

Angústia

Comprou cigarros. De início iria fumar só um (talvez outro) depois do trabalho e jogaria fora o maço ainda cheio, como fizera tantas vezes. Mas desta vez fumou vários, um a um, dia após dia, na interminável promessa de parar na manhã seguinte. Que não chegou. E ao redor da fumaça fedorenta flutuavam nebulosos pensamentos sobre a vida e uma certa nostalgia. E um buraco no estômago... humores? Blá-blé-bli-bló-blu, diria um poeta apaixonado. Não podia crer em poesia; não neste momento. Caminhava errado, porém qual o atalho correto. Angústia crescente nas lombadas. A cada cigarro aceso percebia que o buraco não era vazio, estava repleto de uma massa aterradora, absurda. Sufocante. Sentia falta, mas de quê. Uominis-humbre-falus-pensantis-amenos, blasfemara o filósofo. Não entendia nada de filosofia, psicologia ou meteorologia. E os raios esbravejando no seu cérebro vertiginoso. Não é estômago, é coração, percebeu. Aí era tarde demais e os cigarros já tinham acabado: voltara a fumar.