A Sinfonia Anônima do Muro

Presto. Prestissimo.
[Con Spírito] Lado a lado, um a um. Na longa fileira, homens e mulheres sem nome lado a lado e um a um. Gemendo, gritando, grunhindo, urrando – em silêncio. Transeuntes mudos passando tranquilamente (mentira) do outro lado do muro indo pra algum lugar (mentira) que não sabiam bem nem ouviram (mentira) os gemidos, gritos, grunhidos, urros que do lado de cá ecoaram dentro do silêncio. Quando lado a lado foram caindo um a um sem nome e lado a lado, sempre. As balas flutuando pelo ar, uma a uma, os corpos caindo como trapos sujos, seguidamente, complexa coreografia, um balé, e a plateia que vivia do outro lado do muro não foi convidada para o espetáculo, [Ritardando] que pena.
Um a um a conceder o prazer dessa dança de um segundo, e o silêncio pronunciando seus nomes, cuidadoso com cada fonema, cada som e o mundo todo se estilhaçando dentro do buraco negro do silêncio.  E nele a música inaudível de suplícios e memórias. [Cantabile] Marulhos e silvos, gosto de terra, canto de mãe, suores, lambidas, berros de nascidos e berros de mortos, passos lá fora, passos lá dentro, unhas, nuvens. [Maestoso] Diálogo sutil no princípio da desmemória: um a um caindo sem nome lado a lado do lado de cá desse muro branco, alvo, alvo de tinta branca e fresca pintada com cuidado para se manchar. E a muda sinfonia de manchas vermelhas se cruzando na superfície pálida e limpa, branca, imunda, imunda, a sinfonia muda e diante dela a improvisada coreografia da dor, e o maestro, o maestro em êxtase regendo do alto de sua poltrona de couro tão longe dali, [allegretto um poco agitato], os gemidos, os gritos, [andante, con spírito], João, Teresa, Carlos, caindo, caindo, [presto con fuoco], Marília, Jorge, José, [presto, prestíssimo scherzando], o muro, o muro, o muro, [allegro assai], o silêncio, o gemido, Vera, Guilherme, [rallentando, rallentando, rallentando]... [tempo rubatto]. Tempo roubado. O muro.
E um pequeno buraco, um pequeno buraco cavado por anos a fio, por onde um garoto espiava. [Con Amore.]

Um comentário:

  1. “O olho vazio do buraco negro absorve ou rejeita, como um déspota parcialmente corrompido faz ainda um sinal de aquiescência ou de recusa. Um certo rosto de professora é percorrido por tiques e se cobre de uma ansiedade que faz com que chegue ao ponto de ‘não dá mais!’. Um acusado, um subalterno apresentam uma submissão tão afetada que devém insolência. Ou antes: muito polida para ser honesta. Tal rosto não é nem o de um homem nem de uma mulher. (...) O muro branco não para de crescer, ao mesmo tempo que o buraco negro funciona várias vezes. A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima escolha (...) Ah, não é nem um homem nem uma mulher, é um travesti”.

    Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs, Ano Zero – Rostidade

    “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não veem”.

    José Saramago, Ensaio sobre a cegueira

    “Pois toda carne é como a erva e toda glória do homem como a flor da erva.
    Secou-se a erva e as flores já caíram”. (1.Pedro 1.2,4 e 6)
    “Pura vaidade é todo homem por mais firme que viva.
    Andando aqui como a sombra, andando em vão e totalmente irrequieto,
    Ajuntam sem saber quem recolherá”. (Salmo 39.5 até 7)

    Réquiem Alemão, Op. 45, Johannes Brahms

    http://vimeo.com/63349528
    Ensaio Aberto - Marin Alsop rege "Um Réquiem Alemão" de Brahms

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