Cozinha da carne


Desce a ladeira a marcha fúnebre
dos vagabundos e prostitutas,
gargalhando extravasados
“fodam-se” à sagrada família:

É o enterro de Quincas Berro d’Água!
A festa é cidade baixa,
É festa no mar!
...

“A pipa do vovô não sobe mais
A pipa do vovô não sobe mais
Apesar de fazer muita força
O vovô foi passado pra trás!”

“Ele tentou mais uma empinadinha
A pipa não deu nenhuma subidinha
Ele tentou mais uma empinadinha
A pipa não deu nenhuma subidinha”


...

Januário estava pego em lembranças. Diabos, como se divertia naqueles carnavais de outrora, da mocidade juvenil. Agora essa dor nas costa...

Sambista ortodoxo, marcador de responsa do surdo nos batuques da comunidade, agora tem que aguentar o mister Catra cantando a versão pancadão daquela saudosa marchinha de outrora. Raios que os partam, que vão todos pra puta que pariu!

Lançava maldições assim seu Januário, esquecendo ser ele mesmo gigolô das antigas, Leão de Chácara de responsa, conhecedor e mesmo padrinho de boa parte dos filhas da puta da sua quebrada. Não lembrava também que quando começou essa história de funk já era macaco véi dos bailão. Bons tempos daquele Black Power; agora ele é careca bola oito.

Na verdade Januário só está de mau humor mesmo, saudade que bateu doída no peito, saudades da Amélia; aquele jeito tão de repente inconsolável e derradeiro em que ela voou pro céu e faltou na terra ao mesmo tempo.

Agora, derramado todo o leite, esvazia-se nos sons surdos da multidão, entre a quarta feira de cinzas e o dia de Finados. Espera sua vez de virar passarinho (quem sabe besouro, mesmo um urubu-rei, um gaviãozão?). Enquanto isso observa lentamente os movimentos inertes de cada momento que passa.

“Essa carcaça véia é casulo, vai virá asa, ah se vai, to cozinhando!” diz aos amigos que chegam, pro carteado e pra cachacinha.

Decerto que, quando voar, vai ao encontro dela.

Correção

Sou um homem correto: estudei, trabalho, pago minhas contas. Casei, tive filhos, sustento uma família inteira com o suor do meu trabalho. Vieram os netos, e um deles, certo dia me disse:

- Vô, eu posso?

Algo me fez ter vontade de dizer sim. Talvez os olhos da criança que brilhavam. Mas lembrei que sou um homem correto.

- Não, não pode.

Pés no chão para evitar grandes quedas. Olhos brilhantes enchem a alma, não a barriga. Assim aprendi e agora ensino, pois sou um homem correto. E homens corretos não voam.

Sempre fora assim.

Voava com uma só asa; é que sofria de cacos!
Desde pequena era assim. Acostumara-se ao coração feito de margens e aos pés em desalinho.
Via formigas e pensava em mundos distantes. Olhava de perto aqueles corpos pequenos, irritantes, curiosos e pisava em cima deles. (tinha medo de amontoados!)
Via o céu e sonhava. Era mais difícil pois lá em cima tudo era possível.
Era difícil pensar no possível!
Por isso mesmo passava horas do dia se enredando nas nuvens,
cavalgando em algodões, pulando pó de estrela!
Os cometas eram seus preferidos!
Nunca compreendeu funcionamento de penas, as dos pássaros e as suas: como um pedaço de quase nada podia te levar pro alto? Como um pedaço de quase nada te tirava do chão?
Não compreendia muitas coisas. Como por exemplo: os gritos da vizinha com seu cachorro Banzé; como a água que é uma coisa transparente e que não dá pra pegar quebrava as telhas de sua casa; porque os mais velhos diziam “Vá com Deus!”
Talvez fosse seu coração feito de margens que deixava que o entendimento caísse nos vãos.
Gostava de flor! Dos infinitos cheiros coloridos. Esses eram de fácil entendimento:  - Flor tem perfume, oras! Até as que não se deixam sentir tem! Para essas só era preciso uma atenção especial de joaninha.
Aprendera que para voar uma espécie de agudo se formava entre o esforço e o vão do coração.
Aprendera que o agudo apitava! E que quando o agudo apitava um tremor irreversível  sacudia os cacos e acordava a asa.  
Voava com uma só asa. Doía. Ela não sabia que doía porque nunca tinha sido de outro jeito.
Só sabia que sempre fora assim.

Interiores

Deitou-se sobre aquela asa
Arrastou-se de um lado para outro
Fez daquelas penas sua morada, sua pele
Enrolou-se, aconchegou-se
Quieta, tranqüila
Até a manhã seguinte
 
Desperta, ergueu-se de supetão
Tentou livrar-se daquela c-asa
Tarde... ela já colara em suas costas
Bem na lateral esquerda
Sorrindo
Movimentava-se num abrir e fechar
Delicado, vagaroso
 
Sacolejou, puxou, gritou...
Tentou livrar-se da intrusa
Não conseguiu liberdade
Calada
Recolheu suas penas
Esperando pela metamorfose
Completa

Voos

Nada que vale.
Eu aqui parada e você aí mudo. Nada.
Permita-me que te conte uma coisa: você caiu já era tarde, você perdeu o rumo já era tempo.
Eu plantando sonho em terra seca e você queimado de tanto medo.
Estávamos aqui juntos construindo a tarde, proclamando o futuro em horizontes e como num domingo, por pura monotonia, você voou.
Nada.
A liberdade, eu defendia, haveria de nascer das minhas mãos, da labuta. Crescendo por caminhos ainda desconhecidos.
E você acreditava nela como uma dádiva divina.
Deus havia de ser um cara muito injusto, eu provocava. Ríamos juntos, como que sabendo que aquilo já era o princípio do abismo.
E para cada abismo que nascia eu inventava um pequeno prazer, como um laço que repara o buraco da roupa velha. E assim, quando olhava-me no espelho via uma menina  com a vestimenta toda enfeitada e ria, ria sem parar.  Apesar de  por dentro já sentir o incomodo de cada pequeno alfinete sobre a pele ainda sensível, desprovida de casca.
Quem por ali passava via só a menina de riso histérico e roupa colorida. E você também decerto , mesmo que despindo-me ao fim do dia e lambendo cada pequena ferida,  preferia guardar essa mesma imagem. E eu engolia tuas utopias, teus partidos, líquidos quentes  com os quais eu fingia saciar minha sede.
Des- culpe, meu a- mor.
Nada. Agora  a palavra é uma navalha. E sou eu quem a possuo.
Eu não sa-bia que.
Nada.
O medo  já não faz mais sentido, a queda fora longa. E você há de ter medo agora que já chegamos aqui, lábios tocando o asfalto seco? Nem água havia no fim . Tudo era seco e não havia som nenhum. Como a imagem de uma cidade em pause, inaudível, eternamente presa num sinal fechado.
Permita-me que te diga: Já era tempo. Já era um fim. Voa.
Eu ficarei aqui, não corro. Cresço comendo um-de-tudo que encontro pelo caminho, não se preocupe. Vai.
As asas que criamos juntos? Não sei. Nada que vale. Nada.
Ele cruzou a porta.
Fechei os olhos e senti as cócegas. Elas estavam lá. Eu as engoli você não soube. Gozo, voo secreto por dentro de mim. Tudo.