Kintsugi


金継

Rocha polida pelas ondas
Fenda tectônica
Cicatriz de batalha

Um co(r)po que caí
Um graffitti que sobe

De certo só corpo
Deserto sol cor e pó

Ouro e barro
Dourado de terra
Ocre sagrado

O náufrago sobrevivente
Surfista prateado
A pena e a espada

Vida que vai
na espuma do tempo
o fio da navalha


(r)


Preci-so sen-tar, pensou.

Não, não pensou. Caiu!

Ahhh, Caiu.

Rastros vermelhos pela casa. Manchou o carpete e a roupa. Ficou envergonhada e arranjou desculpas. Divagou sobre a gravidade, do ato e do ar. Depois de recolher seus restos pela sala, ensaiou um sorriso e ficou envergonhada. Antes de dormir, chorou. Uma hora da mão e outra no chão. Estava anônima até o estrondo no chão. Os olhos que antes cegos a sua presença, agora a julgam. Lembra da sua frieza que encostava em sua boca e a aliviava. Da refrescância de seu líquido. Suspira. Passa a mão nos lábios.  Uma hora da mão e outra no lixo. Não, definitivamente, não era sobre o corpo. Um r no meio do caminho que mudava tudo.

Porque são tão frágeis? Pensava fitando os sapatos ainda manchados. Por que somos tão frágeis. Pensava fitando os pés machucados. Como pode terem as mesmas finalidades mas serem servidos de formas distintas. Definidos por seu formato, origem e conteúdo, esses malditos adoradores de chá, caipirinha e água. Eram meros coadjuvantes de jantares mas as vezes elementos essenciais de festas. Quando caem, fazem barulho e são motivo de brigas e risos. Se cometem suicídio ou são arma de fúria, esperneiam no chão, se desintegram, fazem bagunça e sangram os pés dos desavisados. Dessa vez não foi só um corpo caído, foi o copo.

Assutada, achava ter relevado muito de si naquela cena. Afinal vida lhe ensinara que a forma como alguém reage a um copo de vidro no chão, a revela. Umas brigam, ficam emburradas e outras relevam e limpam. E a queda molhada acaba virando história de risos. O copo no chão é o símbolo do inesperado que desarruma tudo e cria a situação inconveniente, inesperada e incolor. Dizia a todos tentando filosofar sua queda e disfarçando o incômodo. Não é só um copo, pensou. Eo incômodo passou do copo ao corpo.

Parou.

Parou de respirar.

Bebeu.

Quebrou mais um copo.

Dessa vez não ficou atônita nem amaldiçoou a textura do vidro. Olhava para a bagunça e analisava os elementos no chão. Esparramados, molhados, em pedaços. Pegou os cacos na mão e se lambuzou do líquido do chão. Percebeu que não era só um copo caído. De repente, seu corpo também era feito de vidro e sua vida um retalho de cacos e manchas de líquidos. 

E o copo que caí no chão virou um amigo atrasado. Um amigo atraso era uma frustração. Uma frustração era a chuva que molha os pés. Os pés molhados eram uma resposta rude. A falta de gentileza era um dia ruim. Alguém esquecer seu aniversário era um parente indo morar longe. A falta de um pedido de desculpas virou mais uma demissão. O miojo diário era um amor não correspondido. Um plano frustrado, a surpresa inesperada que gera desordem e as coisas que não aconteciam como tinha previsto, viraram apenas um copo de vidro que caído no chão. Sujavam a casa, sangravam-lhe os pés, quebravam a louça mas se virariam motivos de risos ou rancores, dependia apenas do tamanho que dava ao que restava da queda.

Sábio são os gregos que fazem dos cacos comemoração, citava a si mesma orgulhosa. Depois, juntou os outros cacos que havia escondido debaixo do tapete e mesmo se apegando e gostando do chão limpo, passou a comemorar cada copo e cada corpo que uma hora está na mão e de repente, quebrado no chão.  E as coisas viraram só coisas, mas um copo no chão não era só mais um copo, era um corpo. Seus cacos continuariam cortantes mas eram mais leves.

E quando um co(r)po caia.

Respirava.

Lamentava em silêncio.

Juntava os cacos.

Limpava os líquidos.

E Sorria.



Gota

Shi ...shi ...shi ...shiplatft.
Gota.

Corria desenfreada pelas ruas. Tudo embaralhado. Ladeiras bambas em alta velocidade. Subia, doída. Cortou por becos, daqueles de entrada proibida, de passagem marcada a duras penas. Atravessou ofegante, sem pensar: talvez porque seu cérebro chacoalhava, talvez porque havia sangue em seu corpo, talvez porque havia se esquecido de pensar há muito e voltar não era fácil.

Vrum... vrum ...vrum

O vento nos ouvidos fazia cócegas! Lembrou da época em que sua mãe... Não. Não lembrou. 
Desviou de alguns gatos no caminho. Um deles era rajado de amarelo e branco. Olhos verdes. Esse,o de olhos verdes, acompanhou seus movimento trôpegos, passo a passo, impassível!  Por um instante seus olhos se encontraram: os verdes dele, os verdes dela. Ah!

Vazio.

Shi..shi..shiplaft.
Go-o-o-ta!

Faltava pouco para o topo. Mais uma escadinha improvisada, torta. Escorregou. -Ai! Levantou.
–Ai!Vai... tá chegando, pensou. Pensou não, lembrou. Não, não lembrou. Correu.

Shi...shiplat.
Gota vermelha.

Chegou.
Parou.
Olhou, ofegante a vista do alto.O mar!Ah...o mar!

...

O mar...
Ah...
...

O sol deitando-se suavemente no mar...

Vrum...vrumvrumvrum...Vrumm.

O vento nos ouvidos fazia cócegas!  Olhou e olhou durante algum tempo. 
Ah...
Olhou ao redor, estavam todos ali: a igreja imponente, a culpa, o medo, a decisão.
-Ai!

Shiplaft ...shiplaaaft...shiplaftshiplaftshiplatshiplaftshiplaft.

O chão embaixo dela avermelhou . O céu no horizonte avermelhou. De suas entranhas a chegada da noite se fez vermelha.
Vento.Ventre.Vermelho.


-Preci-so dei-tar, pensou. Não, não pensou.Caiu! 

Rosto nu



(crédito da imagem: autor desconhecido)

[samples e amostras,
até bactéria é cultura;
o que dizer de sons orquestrados,
palavras e raios de luz]

A Sinfonia Anônima do Muro

Presto. Prestissimo.
[Con Spírito] Lado a lado, um a um. Na longa fileira, homens e mulheres sem nome lado a lado e um a um. Gemendo, gritando, grunhindo, urrando – em silêncio. Transeuntes mudos passando tranquilamente (mentira) do outro lado do muro indo pra algum lugar (mentira) que não sabiam bem nem ouviram (mentira) os gemidos, gritos, grunhidos, urros que do lado de cá ecoaram dentro do silêncio. Quando lado a lado foram caindo um a um sem nome e lado a lado, sempre. As balas flutuando pelo ar, uma a uma, os corpos caindo como trapos sujos, seguidamente, complexa coreografia, um balé, e a plateia que vivia do outro lado do muro não foi convidada para o espetáculo, [Ritardando] que pena.

Seu José de Dona Madalena

Seu José faça o favor, de não parar de sonhar
De não parar de parar, na hora de trabalhar
De não deixar de olhar, pro lado escuro da sala,
Pro outro lado do muro,
Pro canto oculto da casa...

Seu José nos faça o favor, homem de deus
De não esperar em seu deus,
De não esperar pela urna,
De não esperar pela chuva...

ENTRE ASPAS

(Numa porta giratória, um homem estressado)

1 - Eu já disse que não tem mais nada, olha minha bolsa!
2 - Não posso olhar, senhor! A empresa não permite que eu reviste clientes, pode causar constrangimento.
1 - Mas eu tô pedindo pra ser revistado, euuuuuu to pedinnnnndo! Tá todo mundo vendo, eu quero ser revistado!
2 - Senhor, não tem nada de metal na bolsa? Talvez a fivela ou seu cinto…
1 - Já disse que não! Que merda! Eu os preciso fazer esse tramite! (joga bolsa no chão e fica com um papel na mão) Eu entro só com o papel!
2 - Senhor, a empresa não se responsabiliza pela bolsa deixada do lado de fora.
1 - Eu me responsabilizo, abre essa merda dessa porta!

Seu Zé

Há mais de trinta anos, Seu Zé trabalhava como faxineiro em uma escola da periferia da zona sul da cidade de São Paulo.

No início, tinha a vassoura e o esfregão apenas como seus parceiros temporários. Sonhava em ser artista de cinema. Mas, com o passar dos anos, o temporário transformou-se em definitivo e ser artista de cinema já não mais passava de um sonho impossível de se realizar. Foi abatido por forte depressão ao se deparar com tal constatação, como se tudo não tivesse mais sentido. Comer, trabalhar ou até mesmo respirar já não indicava a direção de nada a ser alcançado. Repetia a mesma rotina todos os dias com um profundo mau humor. Era como se cada sala que ele limpava o tornasse mais sujo, pesado de tanta sujeira.

Até que, num certo dia, ao varrer a sala da 7ª série, encontrou um pedaço de papel, um tanto amassado, com algumas palavras, quase que por completo cobertas pela sujeira. “Nem sei porque, (...) espero (...) poder (...) dizer (...) te quero!” Fragmentos de um texto, de uma carta de amor. E Seu Zé começou a remontar em seus pensamentos aquela carta de amor e imaginou o garoto, a garota, a situação, tudo bem nítido como se estivesse assistindo a um filme de cinema. Ficou quase duas horas, parado, apoiando o peso do corpo nas mãos que pairavam sobre a ponta do cabo da vassoura, imaginando.

O verbo é a alma da língua

Dos muitos professores e professoras que tive, poucos permanecem até hoje em minha memória. Manoel de história, foi um dos desses professores que nunca esqueci. Estava na sexta série, e no primeiro dia de aula ele entrou na sala cantando em voz grave e firme: "Boemia, aqui me tens de regresso..."

Eu não sabia o que era boemia nesta época, não sabia também que me apaixonaria por ela. Mas, aquele modo novo – para mim – de começar uma aula me convenceu de que aquele professor era diferente. Ele gostava de ser chamado de Nenel, que era como sua avó de 87 anos o chamava.

Outros professores insistiram em se agarrar a minhas memórias afetivas do tempo de escola. Professora Ariadne era outra delas. Não entrava na sala cantando, não fazia piadas, nem tirava pontos de alunos que erravam as bolinhas de papel lançadas ao lixo.

Ariadne mascava viciosa e serenamente  um chiclete com cheiro de hortelã, mandava seus alunos soletrarem palavras, passava dever de casa todos os dias, em resumo, era a "pior" professora que um jovem de treze anos poderia ter.

O décimo sétimo verso

1   Não há reis que lavrem seus muitos campos,
5   Quem, por ventura, colhe aos olhos as cores?
2   como fazem aos montes uns outros os deles
6   melodias, encantos, os prantos e os versos?

3   Não há nas fábricas ou lojas filósofos tantos,
7   Brutos, sensíveis, mesquinhos e acolhedores
4   é também o contexto que fabrica os haveres
8   não vos enganai com estes humanos excessos

A Morte Prematura de uma Dúvida

O coração gaguejava lamentos sob o sol a pino. A garganta seca não podia mais. Os balbucios perderam-se pelo caminho. O coração gaguejava sob a solidão a pino – um abandono que queimava a pele, rachava os lábios. Era assim. Um homem só neste mundo de milhões.

O coração gaguejava sobre a terra rachada, a boca rachada calava, a garganta seca engolia um árido silêncio. No estômago só a raiva e uma úlcera dolorosa – na falta do alimento, o órgão devorava a si mesmo. No intestino, vermes. Na falta dos restos que a vida lhe negara, que então outras vidas inermes se alimentassem de sua polpa escassa.