“Batidas
na porta da frente
É o tempo.
Eu bebo um
pouquinho pra ter argumento...” (Resposta ao Tempo, Aldir Blanc)
Acordava
intermitentemente durante a noite, sonhava estar só. A angústia rasgava a
garganta em gritos alucinados que ecoavam na noite quieta e morna.
Os gritos
arrancavam do sono profundo, repentinamente, a filha em sentinela, o coração de
quem espera por notícia ruim a qualquer momento galopava no peito. Após breve
pausa, a serenidade voltava ao lar, já envelhecido com suas histórias devidamente
marcadas no compasso de cada rachadura a correr pelas paredes.
Vivera muitos
anos, sabia beirar o leito de morte. A mente pescava sanidade, fundindo
realidade e ficção. Vez por outra falava com ancestrais partidos a muito destas
paragens, outras dialogava longamente com os vivos, cheia de energia e lógica
pinçada no cotidiano vivido intensamente.
A morada
acalantava suas histórias, na parede a moldura da fotografia em preto e branco
sorria aos passantes, com dobras de segredos singelamente guardados nos olhos
negros, cabelos enrolados sobre a cabeça e no vestido especialmente preparado
para a ocasião. Tirar fotografia era um evento de muita importância naquela
época.
A juventude
explodia na fotografia, com a tez macia e bela. As marcas do trabalho árduo na
lavoura, se existiam, ficavam ocultas até mesmo dos olhares mais vis.
Hoje,
arrastando chinelas pela casa, vagarosamente se movia e se vangloriava em surto
de lucidez ao dizer a quem quisesse ouvir “há quantos anos bate este meu
coração, um dia coitado, há de cansar”.
Varria, cosia,
costurava, lavava e estendia calmamente as roupas pelo varal do quintal
ensolarado, espichando os olhos para o horizonte, admirando as bordas da
megalópole explodindo qual pipoca na panela aquecida.
Vez por outra
um riso maroto dançava ao vento, bisnetos chamando pela bisavó querida, ela
correspondia ao sorriso, sem excessos, coisa de quem tem sabedoria. Na rasteira
do riso surgia o neto, a neta em busca de carinho e talvez, quem sabe, uma leve
orientação que surgisse qual brisa da manhã, suave, sem invasões abruptas,
recoberta de ponderações carameladas. Como chegam se vão, felizes e vivazes
correr atrás da vida, condição a que se impõe a juventude dos dias modernos,
qual relógio amalucado que ao correr tanto para conseguir dar conta das horas,
perde o eixo e o tempo de cada minuto.
A cada canto
da casa um dedo de prosa antiga. Os filhos, vivos e mortos, dialogam pelos ambientes; no coqueiro
espelhado balançando ao vento, o aniversário lembrado pelo filho Clodoaldo, nas
flores artificiais coloridas a arte do querido filho Diogo, no tapete rendado
as mãos valentes da filha Samira, nos cabelos coloridos acaju o carinho de
Cecília, as unhas devidamente cortadas e pintadas alegremente o toque de Renata,
no café quentinho ao bule – nunca aderiu às modernidades de cafeteiras
elétricas – o paladar de Maurício, na sacola de correspondência improvisada na
janela do quarto a presteza de Edvaldo, na caixa de bordados decorada o riso
cristalizado na juventude de Maristela. E assim, de lembrança em lembrança ela
vai encontrando os farelos de momentos grandiosos e vivendo enquanto faz viver.
Nas escadas
intermináveis que levam a morada o peso marmorizado do abismo aos pés de quem
resolve adentrar por aqueles labirintos. Quanto maior o número de vidas a vagar
num espaço, mais rarefeito o ar. Assim, quem conhece, teme, quem teme age com
ponderação e sobrevive ao maremoto de histórias entrelaçadas e conflitantes que
circundam um lar complexo e abastado. Sobrevive e sai com marcas coladas ao
corpo, qual tatuagem monocromática. Sai e carrega consigo, ao mundo, os outros
calados, sussurrados tanto ao pé do ouvido que muitas vezes pensa ser seu eu a
falar.
Os pés
arrastam chinelas vagarosamente; as mãos fazem a goma das toalhas bordadas que
embelezam o bufê, a cristaleira, a penteadeira; os olhos travam batalhas com as
pálpebras que buscam ocupar territórios nunca conquistados; um novo retrato se
recompõe tão vagarosamente que a pessoa nem percebe, quando se vê faz a pergunta
corriqueira “quem é essa que agora vejo no espelho refletida?” e complementa
“eu era tão bela”, mal percebendo o banquete de beleza que proporciona a poucos
que podem e sabem bem apreciar o ser que rasga um século como quem rasga uma
folha de papel industrializado (frágil e sem sentido), com o estandarte do riso
no olhar.
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