Certezas, somente quando...

Só quando tiveres olhos de infinito...
Verás como são ínfimas, as certezas que dizes ter
Caberás no vácuo, e mesmo assim te acharás
Teus redemoinhos, tuas obras-primas e teus juízos
Tudo isso será teu e de todo o mundo
Mas somente quando tiveres paisagem de infinito...
Porque os abismos têm fundo
E as estradas, essas que tu dizes querer
Se desdobram para passar em tua esquina
Teu guarda-chuva, se fecha só para a chuva te molhar
Mas tudo isso, só quando tiveres flores em teu jardim infinito
Porque teu sal precisa ter gosto de mar
E o teu saber e o teu sentir,
São tuas entranhas, tua pele, o teu suor.

Anamorfose

Havia ela escrito esse texto; um texto tão particular que cada um que lia tinha impressão de tratar-se de história totalmente distinta daquela que lhe havia contado o amigo, tendo lido o texto alguns dias antes. Mas não era no tempo que a diferença se estabelecia e senão no espaço. Duas pessoas que lessem o texto ao mesmo tempo, de pontos diversos no espaço, teriam razão de uma outra novela; ou de um poema; quem sabe, ainda, de uma nota de rodapé; poderia ser que lessem as duas uma mesma coluna jornalística e que, no entanto, cada notícia relatasse o mesmo acontecido numa cidade inteiramente outra. Seria, então, por haverem lido aquelas palavras que chegariam a conclusão de sua própria existência no mundo, uma vez que lendo distintas imagens diante de um mesmo pedaço de papel preso a uma parede, seriam, assim, depoentes da divergência essencial em que se estabelecia aquela experiência. Sentiriam como se estivessem também sendo lidos quando julgassem, por sua posição no espaço, colocarem-se as vistas de um observador atencioso, que enxergava, para cada visada e em cada lugar, uma história particular.

Era uma vez um dia de chuva

Era uma vez um dia de chuva. Era uma vez um dia.
A boca do jarro se abriu e da falta dos olhos chorou.

Uma vez, dois. Outra vez um e um.
O jorro da borda desceu e da falta do colo molhou.

Sobre ou sob um pedaço roubado de mim ou de você

Como pode uma certeza se esvair como incerteza?
De modo ingênuo e duradouro perco-me nos vãos que se instalam de nada entre nós.
Vãos espaços.
Vãos espasmos. 
Vão. 
Vão de ir, mais de um. 
Vão de partir um sem outro, um em dois. 
Ele foi e consigo levou parte: nem todo nem nada: parte de mim.
Um pedaço que não se encontra mais.
Arrancou, levou sem pedir.
Roubou-me. 
Roubou-me de mim.
E agora quando o vejo - Ele - não o vejo mais: só procuro o que me foi roubado e nem sei mais, se ele é dono desse pedaço de pecado que tiraram de mim. 
Ou se fiquei, em pedaços perdida, no ar. 
Não sei se sou, se tenho, se sinto.
Só sei que vou, como ele foi e permissiva estou.
Dei-me carta de alforria: alforria da dor da ausência e do tempo mastigado e dificilmente digerido todos os dias pela falta.
Fui e quando vi era pro outro lado. 
Fui como ele, mas algum pedaço desse um dividido em dois decidiu habitar o não-lado do outro.
Amor-maldito, incerteza-tenra, dor-passiva, cor-massiva, pensamento-desalento.
Careço. Padeço. Suplico:
- Me habite em seus olhos para então habitar-me.

Rogaine, Viagra, Olestra

Roberto fez 30 anos semana passada. Sem muito que fazer, chamou os colegas de trabalho pra um happy-hour na sexta. Não tinha mais sua família por perto para comemorar. Seus pais moravam longe, e o seu relacionamento com eles nunca foi dos melhores. Eu sou os cabelos caídos de Roberto

Roberto saiu de casa pra fazer faculdade em São Paulo aos 18 e de cá nunca mais saiu. Não queria mais saber de voltar pro interior. Seus pais se separaram quando ele tinha 12 e ele foi criado por uma mãe que se virava em duas ou três, já naquela época, pra trazer o pão e cuidar da casa. Seu pai teve outra família e nunca mais foi o mesmo. Aliás, outras famílias, nem as conhecia ao certo.

Assaltantes Anônimos


"A mais perigosa criação no mundo, em qualquer 
sociedade, é um homem sem nada a perder."   
Malcolm X        

Isso é um assalto! Anunciou confiante. Passa tudo! Vamo, vamo, vamo logo senão leva chumbo agora! A mão firme. O rosto escondido. O corpo protegido pelas vestes. O corpo fechado pelo terreiro. Tá olhano o quê? Qué morre cara, cê tá quereno morre? As chave! A bolsa da madame também! Passa, passa, passa logo cara. Chico, pega tudo aqui, vamo logo, corre qui os home tá chegano. Apressadamente saem da lanchonete dos Jardins. Droga! Essa moto falha quando mais precisa! Duas, três, quatro fortes pisadas no pedal, ela arranca, Chico na garupa. O cachorro louco [1] rasga a cidade.