Estávamos preparados para o embarque
quando, de sua cabine, o piloto anunciou que a Copa do Mundo de Slam este ano aconteceria
online. De modo autocrático, comunicou ainda que para prosseguir viagem deveríamos
aceitar seu cego plano de voo.
Entendo slam como espaço do encontro.
De ver, rever pessoas. De trocar energias, sensações, impressões. No caso da
Copa, de conhecer outros poetas de vários países, com línguas e sotaques
diversos. De ver o mundo e ser visto por ele.
Essa relação se rompe, evidentemente,
com a pandemia do COVID 19. Porém haveria a possibilidade de suspender e
remarcar o evento para após o fim do isolamento social, como fez o comitê
olímpico do Japão, ou fazer online, e esta foi a opção por ele escolhido. O
criador do slam Marc Smith denomina os coletivos que organizam slams de “comunidade”,
ou seja, uma coletividade em comunhão unida geograficamente ou por afinidades. Até
pode ser comunidade se pensarmos nos territórios onde são feitos livremente por
grupos em autogestão ocupando as ruas, unidos por identidades de raça, classe,
gênero, sexualidade, mas não me parece que se este termo se adequa quando se trata
de um evento unificador. Não dessa maneira.
O realizador, possivelmente, consultou
algumas pessoas para tomar esta decisão, mas não houve diálogo com as organizações
e tão pouco com os poetas representantes, ambos foram pegos de surpresa. Não é
de todo mal se adaptar às novas exigências temporárias e explorar outras
possibilidades de se realizar um torneio de poesia falada. Mas numa comunidade,
se imagina a horizontalidade das relações para se definir os caminhos. Um dos
elementos que nos une é a concordância.
Sendo online poderia ter escolhido jurados
de diversas partes do mundo, (já imaginou que lindo seria?) e não somente seus
amigos franceses dos condomínios de Belleville. O modo impositivo e
desrespeitoso que a produção do evento já vinha tratando alguns participantes,
em especial, uma participante com dificuldade de locomoção, chocou a comunidade
internacional de slam gerando um pequeno boicote em 2018 fato que não abalou a sua
estrutura.
A Copa do Mundo de Slam, o Grand Slam
Paris, ainda é o maior e mais prestigiado evento desta modalidade. Desde a
época das companhias de teatro italiano da Idade Média que o sonho em se
apresentar em Paris persiste nas mentes dos artistas e em nós latino-americanos
isto ainda é potencializado pela nossa história escravista. Sonhamos com o auge,
em um dia fazer sucesso na Europa ou nos EUA, por exemplo, os jovens jogadores
de futebol, eles não se satisfazem em jogar em clubes brasileiros, pra serem
consagrados precisam passar pelo Real Madrid, Barcelona, Milan, PSG e, haja
vista, com os jovens slammers não é diferente. Aqui não basta ganhar no Brasil,
nem para quem faz e muito menos pra quem acompanha, não te traz o mesmo
prestigio. Eu mesmo participei em 2014 e até hoje consigo trabalho e
entrevistas em virtude da minha participação e colocação no mundial. Este evento
foi fundamental pra mim e gostaria que a organização reavaliasse seus erros. Pois
isso mexe com os sonhos de centenas de pessoas pobres.
A transferência do evento presencial para
uma live poderá limar a chance de um poeta periférico latino-americano ou
africanos que nunca saiu do seu país de origem, e que possivelmente nunca sairá,
poder viajar pela primeira vez, e dessa maneira conhecer outra cultura, comer
outra comida, ver a Torre Eiffel, a Notre Dame, visitar o Louvre, encher seus
pais e amigos de orgulho. Vencer pela
poesia! Fazer slam virtual é como visitar o Metropolitan pelo site,
como jogar FIFA Soccer. É praticar um esporte coletivo, individualmente. Nada
substitui a experiência corpórea, ao vivo.
Vou dar o start, como faço em todas as
edições, porque amo esse jogo e vou torcer pro Brasil, pra América Latina, pra
África, e caso todos esses saiam, como habitualmente ocorre, vou torcer pra
alguns europeus que são ótimos performers. Como sempre a conexão vai cair. E o piloto
continuará enviando mensagens natalinas improprias pra menores no meu messenger.
Seu coordenador chama-se Pilot Le Hot e
dirige com habilitação vencida, sem freios, sem retrovisor. O slam é a sua moto
e nós estamos a pé ou em sua garupa, sem capacete, a duzentos quilômetros por
hora, ignorando a sinalização. Marc já idoso e longe não consegue ou não se
propõe a frear o inconsequente piloto.
Essa tal autonomia que cada comunidade
tem de fazer a seu modo permitiu que o comando fosse assumido por um
desajustado pouco preocupado com acessibilidade, transparência, inclusão e com
sonhos de países subdesenvolvidos. Como não gostamos da polícia e somos contra
a intervenção militar, não acionaremos a lei e nem o faremos pela força, deixaremos
que se acidente sozinho numa curva sinuosa da vida. E faremos nós, o nosso
próprio mundial.
Emerson
Alcalde, 14/05/2020